Resquícios
de Outrora
Denise
Parma
"Tudo
cura o tempo, tudo faz esquecer,
tudo gasta, tudo digere, tudo acaba."
(Padre Antonio Vieira - Sermões)
Sigo pela Avenida Barão de Gurguéia em direção
ao
Centro. À altura da Rua Climério Bento Gonçalves,
a
cabeça volta-se involuntariamente para a direita;
através do vidro da janela do carro, colho fragmentos
da árvore em frente à terceira casa, à direita
da rua... continua a mesma... como se não percebesse a
passagem do tempo... Nos poucos segundos em que a
vejo, percebo em suas folhas uma inclinação exagerada
para baixo, como se, cabisbaixa, lamentasse sua falta.
Normalmente, àquela
hora, ele estaria ali, sentado à
sua sombra, em sua cadeira preferida,
observando a
rua... Apertava os olhos claros,
atingidos pelo
Glaucoma, tentando reconhecer
os passantes... As
sobrancelhas, grossas e grisalhas,acentuavam-lhe
o ar severo, adquirido nos muitos
anos na função de
delegado de polícia, na Piçarra,
no distrito mais conhecido como "Boca-de-pau".
A cabeça
grande, parecia ainda maior, devido à careca
acentuada.
Engraçado...
Só agora percebo o quanto
sua cabeça
parecia-se com a de Sócrates...
Seria por isso que questionava tanto
as coisas? Gostava muito de um debate:
política,
religião, as atualidades...
Apesar do pouco estudo, fazia "doutor" calar
a boca. Recebera a educação
primária já adulto,
depois de passar vergonha ao ter
que assinar com o polegar alguns
papéis dentro de um ônibus
lotado... "Um moço tão
bonito" dissera alguém,
"e analfabeto...". Contratou uma professora
particular, aprendeu a ler e escrever.
Revoltavam-lhe
as transformações apresentadas
pelas tempos de hoje. "No meu tempo...",
era assim que começavam suas
comparações entre
os novos tempos e
sua saudosa outrora..."Fui
criado bebendo água
de cacimba e comendo rapadura; nunca
soube o que era doença. Mas,
hoje em dia..." e punha-se a atacar
o governo que não
combatia o uso exagerado dos agrotóxicos
(que pronunciava"agrotó")
na lavoura.
Se
o assunto era a Aids, ele tinha uma
explicação: "É
o resultado dessa descaração
de hoje... Onde já se
viu, ficarem os dois, boca a
boca, lambendo um a baba
do outro?... No meu tempo, não
se via uma coisa dessas... Depois, pegam
a reclamar de doença!"
Sobre o futebol: "É uma sem-vergonhice!
Um bocado de homens feitos, podendo estar
trabalhando, num trabalho
de homem, estão aí... feito
moleques, correndo atrás
de uma bola."
"Quem
sabe o segredo de Deus?" crente que
não
soubesse a resposta a tal pergunta,
que não se desse
ao trabalho de evangelizá-lo.
Bêbados? Odiáva-os. Espantou
muitos à bala,
enquanto a vista deu... Nos últimos
tempos, até puxava
o revólver, por força do
hábito... preenchia a abertura
da porta com seu corpanzil e,
de revólver em punho,
gritava àquele que não
se dispusse a invadir-lhe a casa. Às
vezes, chegava a dar conselhos... "Um
homem
fica velho fumando, mas não bebendo".
A
vizinhança,
acostumada àquelas cenas,
nem se dava mais ao trabalho de chamar
a polícia.
Gostava de conversar com as meninas...
alegrava a
cara com um sorriso maroto, amaciava
a voz; às vezes,
metia até a mão no bolso,
dava um presentinho...
Dormia
nos fundos da casa, deixava sempre
aberto o
portão do beco que dava para a
rua, para a entrada de uma delas... Foi
descoberto numa madrugada, quando
ouviu-se um barulho terrível vindo lá de
seu quarto... acordou a casa inteira. "Já não
se fazem camas como no meu tempo" deve ter pensado, contrariado com a
situação. Andou desconfiado
por uns dias, depois de ter gaguejado
uma desculpa qualquer para os filhos..."Antigamente,
sim, é que era bom! Eu e teu pai..." E
passava a relatar-me as aventuras vividas pelos dois,
seguidores do candomblé, pelos muitos terreiros
teresinenses. Como ria, lembrando-se das peripécias
aprontadas! Os olhos brilhavam, parecia até um
menino... Oh! E como eu gostava de ouví-lo! Ganhei
muitas tardes ao seu lado...
São resquícios que me chegam
ligeiros, de outrora... do padrinho,
sentado debaixo da árvore. Agora,
restaram-me a árvore, e as lembranças...
© Denise Parma 2005
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