Meu vizinho
Denise Parma
Não sei como ele se chamava, mas vou chamá-lo de meu
vizinho. Na verdade, ele seria mesmo meu vizinho, o
vizinho da frente, se não fosse pelo canal que separa
as nossas ruas. Não sei nada sobre ele, sequer conheço
o seu rosto de perto. O certo é que me acostumei a
vê-lo ali, todos os dias. Sempre que me sentava ao meu bureau, ao lado da janela, e olhava para a rua, via-o
à porta de sua casa, fumando seu cigarrinho ao lado da
lixeira. Acostumei-me com sua presença como me
acostumei às àrvores e aos carros estacionados do
outro lado da rua.
Era consciente de sua presença, mas
não lhe dava mostras disso; não o encarava, nem ele a
mim. Fazia parte da etiqueta, observar-nos
disfarçadamente, à holandesa. Ele era parte da
paisagem, a quem eu consultava de vez em quando,
procurando uma resposta. Fitava o nada, como ele,
concentrava-me num ponto, fazia perguntas ao tempo.
Teria ele encontrado já as respostas?...
Não sei quanto tempo ele gastava ali, diariamente,
indiferente ao clima. E, por falar em clima...
Admirei-me nas primeiras vezes em que o vi,
enfrentando heroicamente o vento, com uma temperatura
de cinco graus, como se não o incomodassem, as manhas
da natureza. Perguntei-me muitas vezes o que o levava
a tamanha atitude heróica. Seria a patroa alérgica a
fumaça de cigarro? E ele, dominado pelo vício, mas sem
querer agravar-lhe ainda mais o estado crítico,
punha-se de pé à porta da rua, em meio a uma
tempestade, fumando calmamente, como se cumprisse uma
penitência. Ou seria ela uma dessas mulheres que
impõem mil e uma regras ao marido? E ele, para
conservar o que lhe restava do amor próprio, ferido em
muitos anos de imposições e resmungos desdenhosos,
agarrava-se teimosamente ao que ela chamava de mal
hábito, preferindo enfrentar a tempestade que
submeter-se a mais uma proibição dentro de casa.
Sentei-me hoje, como costumeiramente, ao lado da
janela. Porém, logo percebi que algo mudara. Senti um
vazio, uma sensação estranha invadiu o meu espírito.
Ao fazer o já tão costumeiro movimento em direção à rua, deparei-me com o seu lugar vazio.
Fazendo uma retrospectiva dou-me conta de que andei
ocupada demais comigo mesma e com as palavras à frente
de meu nariz que quase não tive tempo de olhar pela
janela e observar a paisagem lá fora.
O que aconteceu
com ele? Como não pude perceber a sua falta antes, se
estava tão acostumada com sua presença? Estará de
cama? Quem sabe, internado num hospital? Mudou-se para
um asilo? Se não me engano, acho que ouvi-lhe tossir
com mais frequência nos últimos tempos. Terá sido
vencido pelo vício?
Tenho uma vaga lembrança de ter visto algumas
pessoas adentrando-lhe a casa alguns dias atrás...
Seriam os parentes que vinham dar os pêsames à viúva?
Minha paisagem já não é mais a mesma. Concentro-me
agora no ponto da calçada, onde ele costumava ficar, e
me faço ainda mais perguntas. Quanto às respostas,
essas me faltam agora mais que nunca.
© Denise Parma 2004
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