Mirzá
Se fazia sol ou se chovia, se era céu azul ou cinza, se me encolhia dentro do grosso casaco ou enxugava o suor da testa, não me lembro de nenhuma dessas coisas. Se foi um dia feio, para mim estava sendo bonito. Se foi um dia bonito, para mim estava sendo um dos mais belos de minha vida.
Adentrava a Biblioteca Central de Purmerend com passos de rainha. A confiança do vocabulário de mil e poucas palavras irradiava no meu rosto. O mar de livros à minha frente já não apresentavam hieróglifos, mas palavras, embora eu ainda não soubesse o significado da maioria delas. Uma coisa porém era certa: eu já não era mais a mesma analfabeta que entrara ali alguns meses atrás, perguntando com voz tímida por livros em português.
Ao encaminhar-me em direção a prateleira mais próxima, ocorreu-me que não tinha nenhum conhecimento da literatura holandesa. E agora, qual autor se encaixaria no meu universo-vocabulário tão pequeno?
"Ele escreve numa linguagem poética, mas muito simples. É bom para quem está aprendendo holandês", com estas palavras minha professora de holandês apresentara-o à classe. Ao examinar o conto fotocopiado na folha de papel à minha frente não entendi mais que algumas palavras, o suficiente para saber se tratar de algo entre um velho e um rapaz. O que este algo devia ser, sabia Deus.
No decorrer das aulas, acostumei-me com seu nome. Agora, mesmo tendo oportunidade de ir ao encontro de outros nomes, dirigi-me de encontro ao dele. Com confiança tirei-o da patreleira, com orgulho apresentei-o à bibliotecária, com felicidade o abri em casa para penetrar naquele universo que agora se descortinava à minha frente, apresentando-me a uma nova realidade.
O dicionário Nederlands-Portugees não soube mais o que foi descanso. À medida que lia, impressionavam-me, não somente a linguage poética e simples do autor tão apregoada por minha professora, mas a saudade, a tristeza, a solidão, a incompreensão, o desespero, o clamor por justiça entrelaçadas naquelas frases curtas com as quais descrevia seu universo de exilado político.
Ao ler o conto "De Adelaars" aflorou em mim tamanha revolta que resolvi juntar minha voz, pequena e insignificante, à voz daquele homem. Resolvi pedir-lhe licença para traduzir este conto. Não tinha seu endereço, por isso, encaminhei uma carta para o jornal "De Volkskrant" onde sabia escrever o mesmo uma coluna semanal. Na verdade, não esperava ter aceito o meu pedido. Mas só pensei nisso depois de ter enviado a carta. Mais uma vez era vítima dos arroubos de meu espírito temperamental e inconseqüente.
Para minha surpresa, algumas semanas mais tarde, recebi um cartão no qual o autor não só me autorizava a traduzir, como também a publicar o conto na internet.
Ele já não é mais "een onbekende trekvogel"(2), mas Mirzá(3). Sua pena perpétua duas histórias. Uma, a da literatura holandesa: o conhecimento de causa de cerca de 15.000 leitores concedeu o segundo lugar ao seu livro "Het huis van de Moskee" como um dos melhores livros em língua holandesa em todos os tempos, perdendo somente para Harry Mulisch (considerado o Virgílio atual). A outra é a história dos heróis, tombados sob o signo da opressão, do desrespeito ao ser humano, disfarçados de religiosidade.
E se à sua entrada perguntarem:
- Quem é este?
Responderão:
- Pois não sabem? É Mirzá.
E os homens o olharão com respeito.
Gefeliciteerd Kader Abdolah!
1. De Adelaars (As Águias), Uitgeverij De Geus, 1993, Contos.
2. Um desconhecido pássaro migrante - Conto publicado na coletânea "De Adelaars", Uitgeverij De Geus,1993.
3. Palavra iraniana que significa "o contador de histórias".