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Postado em 20/02/2014

Autismo – Brasil x Holanda

Colunista Fatima de Kwant
Autor: Fatima de Kwant é correspondente do Projeto Autimates na Holanda e disseminadora de informação sobre autismo na Europa. Mais colunas deste autor

Morando há 29 anos na Holanda, sem perder o contato com o Brasil, vivo sempre comparando os dois países, ainda que automaticamente.  As diferenças entre ambos transcendem cultura, clima e extensão geográfica. Praticamente tudo é diferente nos dois, desde o idioma até a culinária. Neste artigo, vou dispensar as várias diferenças e me ater à minha área de especialização, o autismo.

Frequentemente sou indagada por pessoas de ambas nacionalidades sobre o autismo. A resposta é sempre longa, mas a mesma: não existe diferença na maneira como a síndrome se manifesta, mas sim no modo como ambos países se dispõe a tratá-lo e viabilizar o direito de seus cidadãos com autismo.

BRASIL X HOLANDA – as diferenças

Uma das maiores diferenças entre o Brasil e a Holanda, talvez seja o reconhecimento das várias nuances do autismo, levando ao fechamento de um diagnóstico mais rápido na Holanda.

Todos sabemos que sem o diagnóstico, fica praticamente impossível conseguir-se tratamentos que beneficiem a criança e, por consequência, sua família. Enquanto na Holanda o diagnóstico é fornecido por volta dos três anos de idade, no Brasil sabe-se de casos que somente são diagnosticados em idade escolar (avançada), quando a criança não consegue mais acompanhar o ritmo regular e o distúrbio se torna mais evidente.

Quanto menor o grau de autismo – e maior a capacidade de conviver com ele – mais difícil chegar-se a um diagnóstico final. Para isso é necessário a atenção e acompanhamento dos pais, a boa vontade dos professores e do estabelecimento de ensino e do nível de conhecimento dos profissionais que observam a criança.

O Brasil conta com excelentes profissionais. O que o Brasil não conta (ainda) é com um sistema médico que seja eficiente na detecção dos primeiros sinais do autismo, assim como muito mais escolas com conhecimento da síndrome e de como auxiliar a criança neste processo de desenvolvimento cognitivo.

Infelizmente, nem todas as famílias podem custear escolas particulares, onde mediadores acompanham a criança e suas necessidades individuais. A maioria dos brasileiros conta somente com serviços do estado e instituições gratuitas, onde há muita gente de boa vontade, mas também muita falta de recursos – além das enormes filas de espera. Isso quando existe alguma fundação próxima, pois o nosso gigantesco Brasil não possui Apaes e equivalentes centros de atendimento em todas as cidades do país. O que acontece com a família de uma criança que apresenta sintomas do autismo, vivendo no interior de Goiás, por exemplo? Muitas dificuldades encontrarão, para poder assisti-la em seu progresso, o que é um direito de toda e qualquer criança.

O Brasil precisa criar centros de atendimento gratuitos nestas cidades também. As autoridades devem facilitar todos os recursos que venham garantir os direitos de seus cidadãos, onde quer que residam.

Holanda – a pequena notável

Talvez seja esta a grande diferença com alguns países europeus, como a Holanda. Pequeno, tanto em sua população quanto em extensão geográfica, contém somente um pouco mais de 16 milhões de habitantes. Este país oferece a seu povo a possibilidade de viver com dignidade, sob vários aspectos, incluindo a saúde. Para cada cidadão, existe um seguro básico que garante sua assistência médica e hospitalar. O mesmo acontece a nível social e escolar.

Apesar da crise econômica ter atingido esta pequena grande potência europeia, e de vários holandeses terem sofrido as consequências de tal crise, não existe miséria na Holanda. É um país cuja democracia consensual permite direitos a todo cidadão. Por questões culturais, é um país nuchter (pé no chão), onde cada problema, a princípio, deve ser solucionado o mais depressa possível. Com isso, a partir do momento que os pais desconfiam que seu filho não se desenvolve como deveria, é iniciado todo um processo para que se chegue a uma solução.

Conseguindo-se passar pela resistência do médico de família, o primeiro a observar a criança, o paciente será ou não encaminhado para um especialista. A família sendo desafiada pelo autismo terá todo tipo de garantia financeira, a fim de auxiliar o filho com necessidades especiais. Esse é um direito de todos, independente da classe social a que pertençam.

Outro direito da criança é a obrigatoriedade de ensino escolar. Todas as crianças entre a idade de 5-17 anos são obrigadas a frequentarem uma escola. Desse modo, o país se compromete a encontrar um estabelecimento que atenda às necessidades delas. Por meio de instituições de atendimento gratuito, as crianças com autismo são colocadas em escolas regulares ou especiais, dependendo do grau do autismo, da escolha dos pais e do relatório feito pelos psicopedagogos que a examinaram.
A filosofia que rege é: “Regular quando possível; especial quando necessário”.

Nem tudo são tulipas…  Apesar de soar como música aos ouvidos de pais brasileiros, nem sempre os pais holandeses ficam satisfeitos. Um estudo recente, efetuado pela Nederlandse Vereniging van Autisme (NVA), ou Associação Holandesa de Autismo, afirma que os clínicos gerais (pediatras também) fazem parte da classe menos provável de identificar o autismo, seguidos pela escola e os pais. Isso significa que são os pais os primeiros a observarem o autismo dos filhos. Esse fato se dá não somente pelo acesso à informação sobre a síndrome, largamente abordado no país, mas principalmente pelo espírito inquisitivo do holandês, de não crer cegamente em tudo que lhe dizem, ainda que seja de um profissional.

Essa natureza curiosa e um tanto desconfiada, acaba por levá-lo a insistir em mais exames, o que de fato, pode terminar num diagnóstico.
Nos últimos anos muita coisa mudou na Holanda. A crise econômica trouxe vários problemas financeiros para o país. Um destes, o setor da Educação e Saúde vem sofrendo bastante, comprometendo a qualidade de um serviço antes excelente.

Falta de profissionais qualificados, grandes listas de espera e cortes nos subsídios à escolas públicas, vem sendo um grande problema para famílias holandesas na busca do colégio ideal para seus filhos com autismo.

Comparação: Brasil, cadê a lei?

Há cerca de um ano, venho dirigindo meu trabalho também ao Brasil, graças à tecnologia virtual avançada que me permite o contato diário e consistente com pessoas com grande conhecimento do autismo. Este contato regular tem-me ensinado muito sobre o modo como o Brasil encara o autismo, como as autoridades protegem o direito das pessoas com autismo e como as famílias se sentem, incluindo os aspectos sociais e econômicos.Com muita frequência me admiro (assusto) com os relatos destes conhecidos.

A falta de conhecimento geral da síndrome é o que mais choca. Não estou falando das pessoas instruídas, que têm acesso a informações e sabem buscar a melhor ajuda para seus filhos. Estou falando da grande maioria, gente simples, alguns analfabetos, sem acesso a qualquer tipo de informação. Muita gente ainda desconhece o autismo.

Como estas pessoas ajudam seus filhos? O que o município onde residem lhes proporciona, para que possam auxiliar seus filhos com necessidades especiais? Estas crianças vão à escola? Seus pais recebem auxílio para saberem lidar com elas?
Brasil, onde estão as leis que protegem estes cidadãos???…

A importância da lei

A partir de 1963, as pessoas com autismo na Holanda foram reconhecidas por lei. Seus direitos vêm sido atendidos pelo governo, desde então. Tendo sofrido várias adaptações beneficiárias, principalmente pela intervenção da Associação Holandesa de Autismo (NVA), as pessoas com autismo na Holanda tem todo o direito legal como qualquer outra pessoa com uma forma de deficiência. Isso lhes garante a inclusão escolar e social, além do acompanhamento e atendimento contínuo, a fim de que possam fazer parte integrante da sociedade.

Basicamente, os benefícios que a sociedade holandesa oferece aos cidadãos com autismo são:

Centros de atendimento ao Autismo:

  • Consulta, diagnóstico e/ou intervenção precoce;
  • Pré-escolar gratuito, onde a criança pequena(a partir dos 4 anos) já receberá cuidados especiais, antes da idade escolar obrigatória (5 a 6 anos), espalhados em todo o país;
  • Grupos de apoio pra pais, irmãos e cônjuges de pessoas com autismo;
  • Cursos básicos de autismo para pais.
  • Indicação escolar – os centros fornecem aos pais, uma lista de escolas que poderão atender melhor as necessidades da criança.

Função do município:

  • Acesso à informação sobre autismo;
  • Cooperação no auxílio às famílias ;
  • Prática de esportes (natação, equitação, futebol etc.) para crianças e jovens com autismo;
  • Transporte grátis (serviço de vans) de ida e volta da casa para a escola.

Função do governo:

  • Subsídio financeiro às famílias com autismo, para que possam custear o tratamento de seus filhos;
  • Subsídio financeiro para cobrir os gastos adicionais que uma família tem com a criança autista.

Tudo o que foi mencionado acima é absolutamente gratuito, pois garantido por lei.

Vale ressaltar que nem sempre as famílias se encontram satisfeitas, por várias razões. A lista de espera para o atendimento, a qualidade do serviço, a falta de compreensão em casos específicos, o contingente e outros fatores, são motivos para que muitos fiquem decepcionados com a ajuda oferecida. No entanto, as necessidades básicas são atendidas.

Tudo isso é possível graças às leis que garantem o direito dos autistas. Sem elas, as famílias desafiadas pelo autismo encontrariam as mesmas dificuldades que muitas famílias brasileiras vêm enfrentando.

DIREITOS DO AUTISMO SÃO DIREITOS HUMANOS

Devemos olhar para nossos irmãos necessitados e perguntar-nos o que podemos fazer por eles, para que possam integrar-se à sociedade com dignidade.

Escolas, regulares ou especiais, atendimento médico e psicológico, serviço de atendimento social à criança e seus pais, acompanhamento psicológico durante a puberdade, durante o ensino superior(se for o caso) e auxílio na inclusão do autista no mercado de trabalho, sempre que possível.

Estes são objetivos da comunidade autista holandesa, que cada vez mais são encontrados.

O Brasil tem meios de concretizar o mesmo. Para isso é preciso que sejam criadas leis que possibilitem a conquista destes objetivos.

A recente lei nr. 12764, sancionada em 2012, a Lei Berenice Piana, é o primeiro passo para que o sonho torne-se realidade.

O Brasil precisa regulamentar esta lei. É mais que oportuna e mais que necessária.

Um país que não cuida de todos seus cidadãos, não é um país em progresso.