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O AUTISMO E A CURA – Análise de uma mãe que viajou por todo o espectro
Dezembro de 1999. Na sala do renomado psiquiatra infantil, o catedrático holandês, Dr. Van Engeland, recebia o diagnóstico do meu filho: autismo severo com um provável retardamento mental. Em seguida, as palavras que nunca esquecerei: “Tenha em conta que, muito provavelmente, seu filho deverá ser transferido para uma instituição para doentes mentais por volta da puberdade…” afirmou o respeitado psiquiatra. Seguido da frase que também não mais saiu da minha cabeça: “Estamos trabalhando para que no futuro, daqui a uns quinze, vinte anos, consigamos a cura para o autismo. “
O futuro é agora. Dezessete anos depois, tudo mudou. A começar por meu filho. Apesar do prognóstico pessimista, desceu 90 pontos no seu ATEC (Autism TreatmentEvaluationChecklist) – um termo comum na comunidade autista, fazendo referência ao grau de autismo da pessoa autista no momento. Com uma contagem de somente 9 pontos o separando da neurotipía (normalidade), meu filho cresceu para ser um rapaz inteligente, educado, social, empático e, o mais importante, feliz. Desafiando todas as probabilidades, ele está há um passo da cura.
Lembro-me dos anos de luta e dou um suspiro condescendente. A jovem mãe de outrora sabia tão pouco da vida. Focada que estava na cura, não prestava atenção ao todo. “Autisticamente”, eu estava concentrada no detalhe. A cura é um detalhe. Vou explicar.
Todos queremos ser diferentes, até que o somos. Quando lá chegamos, queremos voltar a sermos… normais. Porque a diferença tem um preço; o preço da rejeição, da inveja, da pena, do medo, do desconhecido. Seja para melhor ou pior, a diferença mexe demais com a nossa zona de conforto. Então queremos mesmo é relaxar e viver normalmente.
Enquanto pessoas públicas, artistas e famosos buscam a diferença, nós, os “normais”, queremos nossa transparência básica. Gostamos de fazer o que todo mundo faz: da simples ida à praia ou ao parque, viajar ou estudar até namorar, casar e, na maioria dos casos, termos filhos que perpetuarão nossos sonhos burgueses (normais).
Aí vem o autismo e dá um pontapé no nosso traseiro, como dizendo: “Você era feliz e não sabia. Vim te desestruturar. Vai encarar?…” Não sei se estou representando a maioria, acho que sim, mas acredito que encarar é a única opção quando o amor é mais forte que o susto. Só que encarar não significa aceitar de bom grado. Aceitamos o autismo, mas o que queremos mesmo é a cura dele. Queremos nossos filhos “de volta” – de onde eu não sei, mas eu queria o meu de volta. Aí eu comecei a odiar o autismo. Como se fosse meu pior inimigo. Claro. Por causa dele, meu filho não falava, não me olhava nos olhos, não atendia ao meu chamado, chorava sem razão aparente, se jogava no chão sujo da rua, retirava todos os produtos das prateleiras do supermercado, passava seus excrementos nas cortinas do quarto… Creio que o leitor já tem uma ideia. Meu cansaço e estresse eram tamanhos que eu não mais conseguia ingerir alimentos. Durante dois anos pesei 48 quilos, numa altura de 1,70m. Eu, literalmente, não engolia o autismo.
TUDO PASSA, TUDO SEMPRE PASSARÁ
Dez anos depois, muita determinação e muito foco depois, vem esse ATEC 9 acenando a vitória na nossa cara. E tem mais, o autismo virou ‘hot item’. Graças a tantos cientistas como o pioneiro Dr. Van Engeland e o contemporâneo gênio nacional, o estimado Dr. Alysson Muotri, o autismo está sendo geneticamente desvendado, tal que os seus sintomas mais intensos possam ser inibidos. Viva a biotecnologia e seus milagres! Se for para arrefecer a dor e o susto dos pais cujos filhos vêm sendo diagnosticados, venha cá com a pílula mágica.
No entanto, eu não estaria sendo honesta se dissesse que considero a cura o objetivo final. Não depois de dezessete anos de corrida. Os pais jovens talvez encontrem alguma dificuldade em entender, mas eu não trocaria nada do que aconteceu, do jeito que aconteceu – Ok, com exceção dos surtos diários e do cocô na cortina.
O autismo sacudiu minha vida, mexeu com todas as minhas emoções e desestabilizou meu ying e yang. O autismo, personificado no meu filho; meu sangue; meu amor. Dilema crucial: é possível amar meu filho sem amar o autismo? É possível odiar o autismo sem odiar meu filho? Onde começa um e termina o outro? É da gente pirar. Autoanálise, o tempo todo. Quem sou eu? Quem sou eu, agora? O que eu quero? O que espero da vida? O que espero da vida com um filho autista? Como conseguir o que eu quero? Quero a cura? Que cura? A cura total ou um filho “autista sob controle” (aquele que a gente pode ao menos levar à rua). Muitas perguntas, muitas dúvidas. Mas nenhuma ficou sem resposta.
Jovens e adultos autistas sem muitas limitações, como meu próprio filho, agora, não querem nem saber da cura. A cura é um insulto à sua existência. Estas pessoas são capazes de fazer tudo o que as pessoas neurotípicas fazem, ou até melhor. A cura, para elas, é abominável.
O outro lado da moeda é que pais dos autistas que ainda têm tantas limitações, não sabem disso. Sua realidade é diferente (releia os primeiros parágrafos deste artigo). Por experiência própria, sei que quando uma boa alma nos diz: “Ah, vai passar…”, a gente não acredita e até tem vontade de dar um cascudo na pessoa. “Cala a boca! Você não sabe como é a convivência com um autista, 24 horas por dia, todos os dias! “, pensamos. Verdade verdadeira. Ninguém sabe, nem nossos parentes. De madrugada, então (revirando os olhos)… Por isso estes pais têm todo o direito de sonhar com a cura do autismo, sim.
Mas, um bom clichê não existe à toa. Tudo passa, mesmo. Se o tempo não faz passar a raiva do autismo, faz nossos filhos progredirem. Eles sempre progridem. Passinhos de formiguinha, às vezes, mas eles progridem.
Pode ser que a cura esteja mesmo à vista. Pode ser que ainda tarde muito. Enquanto tardar, convido meus colegas pais a questionarem o que, de fato, esperam de seus filhos. Quando é que estarão prontos a satisfazerem seus desejos maternos e paternos. Principalmente, se a felicidade deles (da família) depende da cura oficial, ou não.
Desejo a todos a cura que esperam. Desejo a todos a sabedoria necessária na tomada de decisões que mudarão suas vidas – e a de seus filhos – para melhor.