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Postado em 02/04/2019

Ser normal já é doidice suficiente

Colunista Fatima de Kwant
Autor: Fatima de Kwant é correspondente do Projeto Autimates na Holanda e disseminadora de informação sobre autismo na Europa. Mais colunas deste autor

Os brasileiros que vivem na Holanda por algum tempo devem conhecem a expressão idiomática bem popular: Doe normaal, dan doe je al gek genoeg! (seja normal, que já é doido o suficiente). Essa frase traduz bem a cultura holandesa, calvinista, non-nonsense, pé no chão, sem frescuras, sem chamar a atenção. O holandês é “normal”, mediano, certinho – e se orgulha disso.

Ser normal é bom. Trabalhar de 9:00 às 17:00, jantar às 18:00, dar uma volta com o cachorro, assistir o jornal das 20:00 e o Bold and the Beautiful tomando um kopje koffie;visitar os pais no domingo, praticar esportes, ver televisão, sair de férias, acampar, passear no Efteling, etc. Ser normal, na Holanda, significa segurança, um dos maiores bens do Holandês. É fazer o que todo mundo faz, gostar do que todo mundo faz e, o mais importante, ser aceito pelo que se faz.

“Os holandeses dizem tudo o que pensam, mas não tudo o que sentem”

Engraçado que as crianças holandesas são ensinadas a serem assertivas já bem pequenas. Dizerem o que pensam é importante. Vrijheid is blijheid (Liberdade é felicidade), e liberdade começa com a coragem de expressar opiniões.Só que, a externalização do pensamento fica no limite de tudo que não tenha a ver com a própria vida, a situação pessoal. Falar sobre sentimentos, não. Mostrar muita emoção, principalmente,“fraqueza” emocional, não é algo que os holandeses aprendem no berço. Em festinhas de família, o assunto são as férias, política, o trabalho, o imposto de renda, o carro novo ou a reforma na casa. Falar do medo de um filho poder ser autista, não. Isso ninguém precisa ou deve saber. Discreção, acima de tudo.

De alguma forma, holandeses aprendem, na criação, que precisam ser fortes. Ser forte, em muitos casos, significa não ter ou não demonstrar falhas, ou o que é percebido como defeito, assim como o autismo e demais problemas de ordem mental, neurológica ou de comportamento. “Meu filho?…Não, Jantje não tem nada. É só a idade, uma fase que vai passar…”

Muitas famílias holandesas não concordam com que seus parentes (filhos, noras, genros, irmãos, sobrinhos) busquem um diagnóstico para seus filhos “diferentes”, pois não conseguem admitir que são familiares de uma pessoa que não seja normal. Elas afirmam que o diagnóstico vai rotular a criança e ela poderá ser vítima da opinião alheia. Pode ser, mas a única certeza que existe é que, sem o diagnóstico, a criança provavelmente não terá o que mais precisa: tratamento e acompanhamento para poder se desenvolver.

O diagnóstico não muda a personalidade de uma criança. Mas a falta dele não vai acabar com o autismo dela

“Assim vão rotular nosso filho”, é o argumento de tantas famílias que não buscam uma avaliação oficial, porém, sabem que o autismo está em casa. E Jantje segue sem diagnóstico, sem terapia, sem tratamento, sem apoio dos excelentes profissionais que a Holanda tem. Jantje se sente cada vez mais perdido e medroso, entre amiguinhos que não entendem o jeito dele brincar, falar, se comportar. O fato de ser um bom aluno não vai bastar, a longo prazo. E assim a autoestima de Jantje vai baixando até o ponto de saturação.

Os autistas estão em todos os lugares. Eu os vejo em todos os lugares e me pergunto se sabem que são autistas. Como puderam chegar à maioridade sem diagnóstico e, quase sempre, sem apoio terapêutico, o que iria maximizar sua qualidade de vida.

O processo de tratamento de um autista é bem mais complexo depois da infância. Nessa fase, o amor e a aceitação da família e, por vezes, de professores queridos, basta. Mas na adolescência e vida adulta, o que a maioria quer, mesmo, é ser aceito pela sociedade, pelo outro – que não sabe que ele é autista.

O diagnóstico do Transtorno do Espectro do Autismo é uma ferramenta; um instrumento temporário (sim, um diagnóstico pode mudar!) que viabiliza terapias e demais intervenções que ajudem o autista a, pelo menos, crescer para ser um adulto de bem com a vida. Ao contrário, a falta de um diagnóstico não melhora a vida do autista, tampouco favorece a imagem que outros tenham dele. Justamente a falta de explicação para um comportamento (bem) fora do padrão, pode tornar o autista não diagnosticado uma pessoa indesejada na sua relação afetiva, nas suas amizades, no trabalho, ou ambiente de ensino.

A cada dia, mais autistas (leves) vem sendo diagnosticados na adolescência e vida adulta. Pessoas que sobreviveram à infância difícil, sem tratamentos – exceto o amor incondicional dos pais. Estes, com a melhor das intenções, esconderam o autismo no armário (sem diagnóstico não existe autismo, certo?)…Incompreendidos, infelizes e/ou com burn-out, jovens autistas chegam ao meu consultório paraconseguirem gostar mais de si mesmos, comunicar-se ou interagir melhor. Como poderiam viver sem se importar com a rejeição dos outros? Eu tento desenrolar o novelo que começou a embolar nessa infância sem laudo médico, sem nome para o autismo patente.

A família sempre pode optar por não abrir o diagnóstico para seu círculo de amizades. Ninguém precisa contar o que não quer, seja pelo motivo que for. Contanto que a criança receba o que merece, o que geralmente vem com um laudo oficial. Afinal, a gente pode (se) esconder (d)o autismo, mas o preço, às vezes, é tão alto que não valhe a pena fingir normalidade.