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Arnild Van de Velde
é de Salvador, de onde saiu há 14 anos. Antes da Holanda, morou na Escócia e na Alemanha. Dedica-se ao jornalismo, à literatura e à execução de projetos culturais.

 

Quando a emenda arrebenta o soneto

Arnild Van de Velde

 

Na semana passada, uma menininha sul-coreana protagonizou um episódio que demonstrou que o povo holandês, freqüentemente definido como "frio e indiferente",   na verdade tem tanto coração como qualquer outro. 

O destino da pequena Jade, a filha adotiva revelada um problema defintivo para sua família, sete anos depois da adoção, comoveu   a gente deste país com unanimidade que nenhuma "burrice" seria capaz de selar.  Nos três dias em que o assunto foi destaque num jornal da Holanda, mais de mil pessoas manifestaram repúdio ao casal formado pelo diplomata holandês Raymond Poeteray e esposa Meta, que desistiu da menina porque ela "não teria" se adaptado à família  e nem gostava da "comida de casa".  

A serviço do governo holandês em Hong Kong, os Poeterays são uma dupla dinâmica, articulada, versada em representar os melhores valores da Holanda, por vezes trajando laranja, a cor nacional, que estudos de psicologia associam a termos como "disposição para o novo" ou ainda "capacidade de estabelecer contatos".
 
Ironicamente, estas mesmas definições parecem ter desempenhado um papel central na história.   A menina, segundo versão fornecida com algum atraso pelos ex-pais, seria incapaz de criar elos afetivos e de se integrar à família que a acolheu.  A princípio,  ela fora "passada adiante",  ao serviço social de Hong Kong, que se viu na incumbência de achar para ela uma nova constelação familiar. Uma menina sul-coreana, filha adotiva de holandeses falantes do ABN*, mas que (segundo inicialmente divulgado) não falava o holandês; uma filha de diplomata holandês, mas que não tinha cidadania holandesa; uma criança empurrada para assistentes sociais, do mesmo modo que o cidadão comum entregaria seu carro usado para revenda numa concessionária qualquer.  E, por último, ex-pais, que escudados sob uma espécie de "agressão defensiva"  fez saber que o problema era deles e não dizia respeito a ninguém. Foi nesta altura que holandeses de todas as faixas sociais derrubaram o mito de uma Holanda do "tô-nem-aí-para-o-que-você-faz".
 
Já na primeira fase das reportagens do "De Telegraaf", mais de 600 pessoas comentaram sua indignação com o caso, muitas delas pedindo o afastamento de Raymond Poeteray do cargo de cônsul em Hong Kong. A repartição pública que o abriga, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Holanda, que de início tentou seguir a cartilha holandesa do "todos são iguais em sua privacidade", viu-se obrigada a reconsiderar sua posição e a recomendar a Poeteray um pronunciamento público. Este veio em forma de carta publicada pelo mesmo jornal, 24 horas depois de iniciada a avalanche. Na mensagem, Jade foi  re-apresentada como uma filha adorada, de quem os pais dolorosamente estariam se separando, em favor da necessidade de tratamento clínico.    
 
A fala dos Poeterays foi logo desmentida por quem a recebeu e passou a observar o comportamento da criança:  Jade apresentava um desenvolvimento normal.  De uma "leviandade jornalística" , a história passou às pautas internacionais  e enriqueceu a lista de bizarrices à holandesa, a exemplo do partido dos pedófilos ou daquele que nega às mulheres o direito de votar.  Não somente  tutores   contestaram a  resposta  ao furor público; ao desmentido deles, juntou-se o depoimento de uma ex-babá não identificada, dando conta de que a  menina nunca fora realmente admitida naquela família. Segundo a "nanny",  a Jade teria faltado o amor de mãe, este bálsamo que tudo cura, como prega a sabedoria popular. O tipo de amor, dizem os mais sentimentais, que  a teria feito  superar traumas e comer como seus pais esperavam.  Na carta, ficou também evidente que ela fora elaborada para atender a  uma norma comum às entidades públicas e privadas, quando atingidas pelas "pisadas de bola" de seus representantes. Um dia depois de dizer que estava "coberto" por seu patrão,  Poeteray reclamou do envolvimento do Ministério dos Negócios Estrangeiros  no "panelaço virtual" encenado no  site do "De Telegraaf", em clara rota errante pela bruma que envolve o público e o particular, quando a pessoa assume a representação de um papel oficial.
 
Jade foi para companhia dos pais adotivos quando tinha apenas quatro meses. Levada a cabo no intervalo de sete anos, a tarefa de integrá-la ao seio familiar, composto ainda de dois filhos legítimos, até somaria pontos para o casal – afinal, o tempo dá a medida da tentativa – não fosse um "pequeno" detalhe: a   jamais providenciada naturalização holandesa da filha. A suposta doença da menina haveria de ser tão grave, que mesmo sendo  um diplomata com trânsito no ambiente burocrático mais apropriado para a concessão de cidadania, seu pai não foi capaz de cumprir uma meta óbvia, quando não obrigatória, em casos de adoção de criança estrangeira.  Adotada em Seul, a menina foi levada para Jakarta e por último para Hong Kong, sempre como estrangeira. Algo tão incompreensível quanto revelador, que sugere descaso para com o futuro da garota. Nesta conjuntura, a expressão "desculpa esfarrapada"  perde seu aspecto clichê.
 
Em tese, uma adoção é um projeto de longo prazo. A ação de tornar alguém "meu" filho , para além do envoltório da caridade, solidariedade e doação ao próximo, requer um compromisso mais delicado do que qualquer outro. Não é como um casamento, onde um adulto, ao   perceber que o outro não é adequado para a vida em comum, pode dele desistir. À parte questões secundárias à afetividade –como dinheiro, por exemplo – a separação entre adultos dá-se em pé de igualdade, apesar de todo sofrimento que causa.   Se a despedida de uma identidade adquirida já causa dor suficiente, o que dizer do adeus à única que se tem? E: se uma criança já se sente abandonada ainda no ventre, o que representará para ela o segundo abandono ainda em tenra idade?
 
É possível que o parecer médico sobre a condição de Jade esteja de acordo com os melhores estudos do comportamento humano,  e com o que há de mais moderno em psicologia da adoção. Ser onhandelbaar , o termo em holandês usado para  definir o problema da menina, contudo, não é característica exclusiva de filhos de criação. Se estes, contrariando o senso moral dos leigos, podem ser "devolvidos",  o que acontecerá aos legítimos na mesma situação?  
 
Raymond Poeteray e esposa pecaram por acreditar que a linguagem fria da ciência faria frente à universalidade da compaixão. Lançaram mão da vida pública para publicar  a própria vida, e depois, com um blasé que é holandês só na lenda, reclamaram uma privacidade perdida e pediram que fossem deixados em paz. Sua carta, em tom de remendo frágil, terá sem dúvida cumprido seu papel oficial; não calou, porém, a voz  de milhares de holandeses sensibilizados com o drama de uma ex-filha.

* Algemeen Beschaafd Nederlands (ou o holandês culto)

Artigos dos jornais:
Herald Tribune
AFP
Sydney Morning Herald
Reuters
De Telegraaf
De Telegraaf
De Telegraaf
De Telegraaf
Mail & Guardian
Terra Magazine

 

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