Entenda o que é a Corte Penal Internacional (ou Tribunal Penal Internacional)*
Clivia Caracciolo, Amersfoort, 24 de julho de 2008.
O direito internacional está de parabéns. Nas duas últimas semanas dois fatos marcantes foram registrados na história de duas das cortes de caráter internacional. No dia 14 de julho, o presidente do Sudão Omar AL Bashir foi denunciado ao Tribunal Penal Internacional (TPI) pelo promotor Luiz Moreno-Ocampo e no início desta semana o ex-presidente sérvio da Bósnia, Radovan Karadzic foi capturado e deve chegar em breve, à Holanda, para ser julgado pelo Tribunal Penal para a ex-Iugoslávia por crimes de guerra e genocídio. Karadzic era um dos acusados mais procurados no mundo.
Três cortes internacionais têm sede em Haia, na Holanda. Desde o século passado a Corte Internacional de Justiça já era baseada no país. Mais recentemente foram criados o Tribunal para julgar os crimes cometidos na guerra da Bósnia (1992-1995) e o Tribunal Penal Internacional. Há também outras cortes importantes como o Tribunal Criminal Internacional para a Ruanda criado para julgar os envolvidos no massacre étnico ocorrido em 1994 naquele país e um mais novo, para os crimes cometidos pelo regime Kmer Rouge, no Camboja, 30 anos atrás.
O Tribunal Penal Internacional ou Corte Penal Internacional (CPI) é o primeiro tribunal internacional permanente e independente, com a missão de julgar crimes de guerra, genocídios e crimes contra a humanidade. É considerado o maior avanço no campo de direito internacional desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o compromisso de “Nunca Mais” firmado com os tribunais de Nuremberg, que julgaram os crimes da Segunda Guerra Mundial.
Estabelecido pelo Tratado de Roma, que está completando dez anos de existência, agora em julho, o TPI conta com apoio da Coalizão para a Corte Internacional Penal (CCPI), em que mais de 2500 organizações não-governamentais estão engajadas em favor da ratificação e implementação do Tratado de Roma. Conta também com a estreita colaboração de governos democráticos, com o sistema das Nações Unidas e com a mídia internacional.
Em contrapartida tem a total desaprovação do governo de Washington. O então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton assinou o Estatuto de Roma em 31 de Dezembro de 2000, o último dia em que o Estatuto ainda estava aberto para assinaturas. Poucos antes do Estatuto entrar em vigor, dia 1 de julho de 2002, o presidente George Bush anulou a assinatura de Clinton. Desde 6 de maio de 2002 que os Estados Unidos fazem campanha declarada contra a CPI. A alegação de Bush é que este tribunal penal “pode iniciar ações politicamente motivadas contra cidadãos norte-americanos”.
O Tribunal Penal Internacional conta com um quadro de 18 juízes, entre elas a brasileira Sylvia Steiner. Ela faz parte desta Corte desde sua inauguração em 11 de março de 2002 e falou à BBC Brasil sobre a importância deste tribunal para a humanidade.
BBC-BR: Como é formado o Tribunal Penal Internacional (TPI)?
Silvia Steiner: Somos 18 juízes, de diversos países e regiões geográficas distintas atendendo ao critério de diversidade deste tribunal que tem caráter internacional.
BBC-BR: Qual a diferença entre a Corte Internacional de Justiça (CIJ) e a Corte Penal Internacional?
SS: A CIJ já existe há mais de 100 anos e trocou o nome de Corte Permanente Internacional de Justiça depois da Segunda Guerra Mundial. É uma corte que faz parte do sistema das Nações Unidas e julga questões, discussões e disputas entre Estados. Já a Corte Penal Internacional é totalmente independente da ONU, é um tribunal penal que julga pessoas acusadas de crime de guerra, genocídios e crimes contra a humanidade, sejam civis, militares, podem ocupar qualquer função no Estado. Os julgamentos são com base na sua responsabilidade pessoal, desde que se consiga comprovar que tiveram atuação direta ou indireta na prática desses delitos.
BBC-BR: O Estatuto de Roma está completando dez anos, qual o fato mais marcante deste período de existência?
SS: o Tratado foi criado em 1998, mas só entrou em vigor em 2002. Este tribunal só tem seis anos de vida, é quase um recém-nascido que está dando os seus primeiros passos. Há dois casos em andamento contra três suspeitos e cinco mandados de prisão aguardando cumprimento. Mas, nestes seis anos já mostrou que veio para acabar com a impunidade dos crimes a que se propõe julgar e que põem em risco a própria sobrevivência da humanidade, além do que por ser imparcial é uma alternativa para a comunidade internacional.
BBC-BR: Qual a principal mensagem que o TPI quer passar?
SS: O objetivo do TPI não é condenar todo e qualquer crime de guerra ou genocídio ou crime contra a humanidade, mas sim mandar a mensagem de que os países devem se preparar para eles próprios julgarem esses crimes. O papel do tribunal internacional é complementar, de só atuar quando um Estado não pode ou não quer ele mesmo proceder ao julgamento. E a outra é de que a impunidade não vai mais ser tolerada pela comunidade internacional e os criminosos não vão mais encontrar refúgio em nenhum lugar do mundo. Os países que ratificam o Tratado de Roma assumem também a obrigação de entregar ao TPI os criminosos que se refugiarem em seus territórios.
BBC-BR: O que ainda precisa ser aprimorado no TPI?
SS: Ainda há muito que se fazer em termos de se estabelecer um sistema de procedimentos uniforme. Os juízes são novos, e o trabalho deles exige uma interpretação do Estatuto de Roma, das regras de procedimento, de superar algumas inconsistências existentes nas regras de procedimentos, algumas lacunas. É um trabalho de criação constante. Por exemplo, na área de proteção às testemunhas ainda se precisa encontrar uma maneira mais rápida de se assegurar a proteção delas. Há também a questão da participação das vítimas nos processos, que é um fato totalmente novo em termos de jurisdição internacional.
BBC-BR: O que já aconteceu efetivamente no TPI?
SS: Estamos com o primeiro caso do acusado de cometer crimes guerra, de recrutamento forçado e utilizar crianças em conflito armado, Thomas Lubanga Dyilo (líder do movimento político e militar União Patriótica Congolesa- UPC) da República Democrática do Congo. O julgamento dele estava previsto para começar dia 23 de junho passado, mas por uma questão processual foi suspenso. Então até agora o tribunal ainda não proferiu nenhuma sentença de condenação ou absolvição.
BBC-BR: O que poderia ser apontado com um ponto negativo do TPI?
SS: o TPI ainda enfrenta dificuldades para solucionar determinados problemas processuais, principalmente. Outra questão é a do orçamento que vem todo dos Estados partes. Um processo internacional não é barato, precisa-se de tradução, de intérpretes. Uma das maiores críticas ao Tribunal Penal é a demora no julgamento. Eu considero uma crítica injusta porque estamos tentando fazer com que os julgamentos sejam mais rápidos. Mas, compreendo que a comunidade internacional gostaria de ver este tribunal trabalhando como os Tribunais para a Ex-Iugoslávia e o Ruanda. Eu tenho certeza que os juízes vão conseguir manter a qualidade do julgamento, mas fazendo de maneira talvez mais rápida.
BBC-BR: O TPI é reconhecido pela comunidade internacional civil e de Estados?
SS: O fato de 106 países já terem ratificado em seus parlamentos o tratado de Roma é extremamente significativo. Contamos com países da União Européia, com quase todos da América Latina, muitos da Europa do Leste e da Ásia Oriental. Alguns países estão aguardando os primeiros julgamentos para terem certeza da imparcialidade e efetividade do TPI. Outros estão modificando as Suas legislações internas para depois poderem ratificar o Tratado de Roma.
BBC-BR: Quem denuncia os crimes ao TPI?
SS: Existem três formas de um caso chegar diante do TPI. A primeira é quando o próprio Estado pede que o TPI assuma o procedimento do julgamento. Estes são os casos da República Democrática do Congo, de Ruanda e da República Centro Africana. O segundo é quando o Conselho de Segurança da ONU remete um caso para o TPI, como é o de Darfur, no Sudão. E a terceira forma é quando o promotor inicia, ele mesmo, uma investigação. Para isso ele deve receber denúncias de pessoas, organizações ou governos. Depois de fazer uma análise e se convencer de que há indícios de que o crime aconteceu e que o Estado não tem condições ele próprio de julgar o caso, ele pede autorização e inicia uma situação de investigação.
BBC-BR: Como se define genocídio, crimes de guerra e crime contra a humanidade?
SS: de maneira simplista: genocídio é um crime reconhecido desde a Segunda Guerra Mundial. São diversos atos, como homicídios cometidos com a intenção de exterminar um grupo de pessoas por razão da etnia, da religião ou raça. Os crimes de guerra são violações graves ao direito de guerra. Existe desde o século passado e foi reafirmado na Convenção de Genebra de 1948. São abusos cometidos em situação de conflito armado, interno ou externo, contra a população civil, ou contra soldados que já depuseram as armas, feridos e prisioneiros de guerra e contra o pessoal da Cruz Vermelha. Crimes contra a humanidade são crimes cometidos de forma generalizada, massiva, sistemática contra a população civil como homicídios, tortura, estupros, escravidão sexual, etc. Darfur é um caso típico de crime contra a humanidade.
BBC-BR: Os tribunais para a ex-Iugoslávia e de Ruanda vão ser absorvidos pelo TPI?
SS: O TPI é o único tribunal permanente e não vai absorver estes tribunais temporários. Eles têm prazo certo para terminar as suas atividades. Os casos pendentes vão ser remetidos aos judiciários dos próprios Estados para se continuar com o julgamento. O TPI só tem competência par julgar casos ocorridos a partir de julho de 2002, quando o Tratado de Roma entrou em vigor.
*Entrevista publicada anteriormente no site da BBC- Brasil. Publicação no Brasileiros na Holanda com autorização da autora e da editoria BBC- Brasil .
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