Na série de contos baseados em músicas brasileiras, (Garota de Ipanema, o Tonico) aqui segue mais um.
Boi de Cara Preta
No buraco onde a gente mora, só mora a gente. Não sei porque dizem ‘num buraco’ porque o fato é que moramos num monte. A gente e muita bicharada.
Gostamos da nossa bicharada. Cada um dos vizinhos tem o bicho que gosta e que pode. Conhecemos e respeitamos os bichos dos outros. Sabemos exatamente quais galinhas são da dona Elzira e quais da Dona Lúcia. Os porcos são da dona Chica, vulgo dona Chiqueira. Não sabemos bem se os porcos moram com a Dona Chica ou se dona Chica mora num Chiqueiro.
Sabemos todos quem é dono de qual vira–lata, qual gato, qual jegue , qual boi.
Juro que nunca atiramos um pauzinho sequer nem para o gato da Dona Dulce nem para nenhum vira-lata que tem dono.
O boi era nosso, o orgulho da rua. Amávamos esse boi. Era um boi de cara-preta. Só vendo este boi e vinha no pensamento um churrasco de picanhas suculentas, bifes de alcatra mal passados e de maminhas assadas.
O boi mesmo tinha outros planos, idéias diferentes, sonhava em ser óffici–boi ou pizza-boi ou então emigrar e virar shusheini-boi em Texas. O que o coitado do boi não sabia era que, assim como havia baile de carnaval na nossa rua todo ano, também tinha o nosso anual de boinosaires por cima de uma brasa. Nem valia a pena dar nome ao boi.
Imaginava ele que só porque sabia fazer careta de búfalo, de mula e de Lula que ia escapar? Vivia numa ilusão.
Pior ainda era que ninguém mais tinha medo das caretas dele. Pegar os meninos? Qual é? A molecada fazia careta para ele, careta das mais feias, aquela de puxar com os dedos as bochechas para trás e de esticar a língua para fora. Depois davam risadas na cara preta dele.
Descrente da vida, desistiu o nosso boi dos meninos e começou com esta mania que quando passava uma vaca, dele ir atrás. Coisa de play-boi. Enxergava uma vaca na sua frente? Bumba meu boi, lá ia ele.
- Cadê o boi?
- Melhor perguntar onde está aquela vaca daquela vaca.
- A Berta. Onde está a Berta?
- Vai a frente do boi.
- Ah, e ele vai atrás?
- Dããããã. Vai, onde a bundona vai, vai ele.
- E onde foi a vaca?
- Foi beber água no rio.
- E o boi, também?
- O boi também. Onde a vaca bebe, o boi também bebe.
- Que coisa.
- Mas acho que desta vez a vaca avacalhou com o boi.
- Ah,é?
- É, é que o boi veio com cantigas mas a vaca não quis saber e primeiro tentou aquela de conversa para o boi dormir.
- E o boi?
- Não caiu nessa e engrossou: queria namorar a muque ou se não mandava a vaca ir para o brejo.
- Boi safado que nem só ele! E aí ?
- A vaca bateu o pé, não quis mais saber do boi nem pintado de branco e fez boicote. Mandou o boi amolar outro boi.
- Não me diga!
- Aí logo naquela beira do rio havia um peixe-boi que viu e ouviu tudo. Era uma ela e bonita pra burro.
- Aí o que é que deu?
- A peixe-boi disse para ele que gostava da cara preta dele e não se incomodaria nada ser amolada por ele.
- Já estou vendo o boi, todo feliz, né?
- Não sei, não. Não sei o que deu mas o boi foi encontradomais tarde boiando no rio mas com um sorriso tamanho de um boi.
- Quer dizer..........?
- É. Foi boi até debaixo de água. Mas antes do boi virar ilha de pouso para urubu ou boi de piranha, houve um churrasco no nosso monte.Teve picanhas suculentas, bifes de alcatra mal passados e maminhas assadas na brasa.
©John Goes, 2006
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