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Johannes Goes, holandês, morou 15 anos no Brasil (Rio, Belo Horizonte, Salvador e Fortaleza). Ensinava Inglês. Escreve por prazer, também autor e produtor de um Curso de Inglês de Conversação Prático. Casado com uma brasileira, 3 filhos e uma neta , mora no Algarve, Portugal.

 

O nascer de um amor no meio de um apagão



Aeroporto Pinto Martins em Fortaleza. Greve dos controladores do tráfego. Apagão aéreo. O vôo deles continuava sem hora prevista. Foi lhes aconselhado aproveitar ao máximo esta inesperada oportunidade de relaxar e gozar . Acotovelados foram eles, o Franklin e a sua esposa Adelaide, à conquista de 5m2  de chão do saguão que marcaram com malas e sacolas como solo de uso exclusivo para ela e os dois filhos.
Ele então finalmente pode ‘relaxar e gozar’ também e começou matar o tempo arrastando o pé pelo saguão observando o público sentado, deitado ou pendurado onde havia dois palmos de lugar.

Havia muitos estrangeiros, principalmente alemães, holandeses e italianos. Todos queimados de sol e muitos, como lembrança, levando um berimbau e alguns até uma nativa. Logo viu: turista vai a um show de capoeira, sai depois catando berimbaus, compra um e leva para casa. Turista vê um show de samba, sai catando uma nativa, se amarra e leva uma para casa.

Além das nativas em vias de se tornarem alóctones em outras terras, também havia os da terra querendo deslocar-se para paragens nacionais e ficando muito exaltados com a falta de avião, falta de informação, falta de respeito e sim senhor a falta de vergonha em geral neste país.

Quem foi que disse que brasileiro não reclama? Brasileiro de classe-média-para-cima reclama, sim senhor. Reclama e você não sabe com quem você está se metendo. Brasileiro da classe-média-para-cima pode ficar enfezado quando provocado. Brasileiro da classe-média-para-cima tem um amigo d'um amigo com um amigo nas altas esferas da VARIG e outro na aeronáutica e promete ao funcionário do balcão que logo quando voltar a São Paulo, vai tratar dele, o funcionário, paraque seja posto no olho na rua. Brasileiro de classe-média-para-cima, buzinando de raiva, também promete aos berros, que mesmo assim, ainda meterá um processo contra este funcionário. Um processo por danos, perdas e sofrimentos, mesmo se isto levaria os costumeiros 12 anos até o Supremo Tribunal, onde aliás manda um tio de um sobrinho seu, quer dizer o seu próprio irmão.

Verá o que é justiça e que a mesma, apesar das aparências-ao-contrário, funciona, isto é se o funcionário ainda estiver vivo e  tiver sobrevivido depois do da classe-média-para-cima ter partido a cara do fdp do funcionário com o berimbau arrancado da mão do alemão intoxicado que estava tocando “Trink, trink, Bruderlein trink” aos altos brados no meio do salão de embarques.

Um alemão daqueles, seriamente de porre por beber caipirinhas demais, um gosto adquirido logo no primeiro dia como acompanhamento do siri que comia num boteco de Mucuripe de onde já não saíra durante toda a semana das suas férias, antecipando e praticando que iria precisar de alguma coisa dessa no fim das suas férias para afogar a dor por não ter encontrado ’eine Liebe’.

Havia aí no aeroporto um ambiente bem brasileiro, para não dizer bem bagunceiro, com gritos ao balcão, gringos fazendo dos seus e pelo que lhe parecia pelas trocas incessantes de carinhos e agarramentos, muitos novos amores, resultado da galinha do vizinho parecer sempre ser mais apetitosa e o galinheiro do outro lado do atlântico ser para os nórdicos um rico aviário. É lá que encontram as tão cobiçadas almas gêmeas, a mulher ideal, aquela com que sempre se sonhou.

Desta vez funcionou não só com os gringos, bastou um breve e único olhar. Passou o Franklin por ela perto dos câmbios. Só aquele olhar furtivo foi o suficiente. Congelou, depois tremeu. Esteve grudado no chão por alguns momentos. Sempre esteve convencido que a dele também existia em qualquer parte e agora, logo ali no aeroporto de Fortaleza, passava ela. Tinha a certeza: era ela a sua alma gêmea, a mulher feita para ele. A sua verdadeira mas desconhecida e anônima cara-metade.

O amor não escolhe tempo, nem lugar. Pode nascer no meio das guerras, nos campos de refugiados, até no meio de um apagão num aeroporto tumultuado. O problema aqui era que ela estava acompanhada por alguém que parecia ser o seu guarda-costas, era alto e fortão, mas também podia ser o seu marido. Com certeza fazia musculação todos os dias e abusava de esteróides e por certo não sabia que esteróides causam uma devastação mortal nas células cerebrais. Pelo seu olhar agressivo podia-se concluir que era um processo já em avançado estágio. Ele andava de mão dada com um menino de uns 4 anos e empurrava um carrinho com malas. Olhava em volta de si com um jeito do tipo “ comigo ninguém mexe, experimente”.

Teve o Franklin a certeza que ela devia ter sentido o mesmo que ele e que ela teve de se controlar para não correr para os braços seus. Convenções sociais de civilização mais aquele brutamontes de um marido, com cara de pré-histórico, a obrigaram continuar andando, também de mão dada com um guri.

Ruminava o Franklin que se fosse 15.000 anos atrás e ainda na época-da-pedra-lascada, não teriam sofrido com estas convenções formais. Não havia esteróides anabolizantes à venda na esquina e para manter um nível adequado, só o caçador valente tinha o direito de comer os testículos do mamute, mas somente antes de o ter matado, lógico. Portanto o homem dela nunca teria provado esta delícia por ter sido um frouxo. Teria seu cérebro intacto ainda e o bastante para poder calcular que meter a sua cara no meio das pernas traseiras do bicho endoidado de raiva por causa dessas mordidas podia ter resultados fatais.

Inteligente ou não, passara ele com ela em frente da caverna d'um desses valentes caçadores e tudo o que teria sido necessário, seria este esticar o peito e fazer um gesto, como quem no século 21 pede carona mas que na época queria dizer:
“Largue esta mulher aqui que ela agora é minha e se mande. Pode levar estes dois meninos contigo, que não gosto de narizes com melequinha e já agora aproveite e leve a minha mulher que já deu o que tinha de dar e é para você não ficar sem nada. Como está vendo, não sou dos piores e se a minha ex precisar de tomar emprestado algumas beterrabas para combater a constante dor de cabeça noturna é só ela falar com a sua ex que agora é minha”. 

Como a mulher do bolha-sem-testosterona o entendia como ninguém e só quis saber de agradar o valente caçador, ele nem precisava primeiro surrá-la para ela ficar apaixonada e foram-se deitar logo na pele do urso, aquele que matou à paulada e que ele teria posto no chão na entrada da sua caverna para ter tudo bem ‘rezela.’

Sendo ela feita para ele, antecipava logo todos os seus desejos e em seguida assaria na brasa uma perna inteira de javali servida com molho de pêssego, o seu prato favorito. Pode-se dizer que se fosse por eles dois a fala não teria sido desenvolvida, já que ela adivinhava todos os seus desejos e ele não precisava dizer nada, fora de uns grunhidos de aprovação tipo gggrrrrrrr, gggrrrrrrrrrrrrr . 

Comparo isto com hoje em dia. Imaginava se ela tivesse passado as suas férias no mesmo resort-hotel que ele e ontem na festa da despedida da última noite os dois teriam conseguido apaixonadamente declarar-se um ao outro. O lacrar da sua paixão teria sido inevitável e a sua separação dali por diante impensável agora que finalmente se encontraram. Não teria outro jeito a não ser levá-lapara o apartamento que mantinha no caso de arranjar um caso com alguém, coisa que nunca se sabe. O seu ninho de amor seria apertado já que com certeza a sua mulher não abriria mão do apartamento cobertura que tinham na Gávea. Tampouco abriria mão de uma larga mesada, consumindo 75% dos seus rendimentos mensais e mais ainda ele teria que dar ajuda ao marido, o ex dela, agora a sua, que ameaçou arrebentar a cara dele se um dia atrasasse com a ajuda na pensão alimentícia e por isso teve de arranjar um segundo emprego e fazer horas extras nos fins da semana. Mesmo assim teriam que fazer este sacrifício, agora que se conheceram e souberam que existiam, que um era feito para o outro e por isso já não podiam viver separados.

Teriam que dormir no sofá-cama mas logo a seguir ela sempre faria uma perninha de frango com purê de maçã, o seu prato favorito. Adivinhava ela todos os seus desejos, os seus pensamentos.

Com o passar do tempo cada vez mais o conhecia e já na velhice perguntava coisas, sem entretanto precisar de uma resposta, por exemplo quando ele vinha do banheiro:

  • Você não se esqueceu de levantar a tábua da privada, foi Franklin? Lavou as mãos depois?
  • Sim.
  • Sim, o que?
  • Sim, senhora.
  • Deixa de suas gracinhas. Esqueceu de levantar a tábua, sim ou não?
  • Já não me lembro se me esqueci ou não.
  • Vá lá ver.
  • Não precisa: tenho boa pontaria.
  • Tinha, já teve. Não precisa me dizer nada. Te conheço. Passei toda a minha vida aqui neste conjugado com o meu traseiro funcionando como esponja absorvente. Agora vá lá, pegue um pano e limpe. Não, este pano não! Este é de enxugar os pratos. Pegue um trapo qualquer. Não, não me olhe com esta cara. Sei o que está pensando. Pare, pare, me solte, seu palhaço.
Ainda bem que ele a viu embarcar depois para São Paulo; e ele, sua querida esposa e os seus dois filhotes foram para o Rio para sua linda cobertura na Gávea, com suas folgas aos sábados e domingos, fazendo planos de tirar umas merecidas férias no ano que vem nas praias de Sauípe na Bahia. É que tinha um amigo com um amigo que tinha um amigo com uma casa por lá.

John Goes , Julho 2007©

 

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