Ela chegou na Holanda no último dia do ano de 2000 com Daniel, na época um bebê de 10 meses, seu filho com o namorado holandês Floris, atualmente seu marido.
Brasileira, 38 anos, mineira e médica Alice Barreto é uma mulher de voz suave que fala calmamente sobre assuntos complicados e polêmicos como é o caso do sistema médico holandês que tanto escandaliza e choca os brasileiros que aqui começam a morar.
Como toda boa mineira parece tranquila mas no fundo sua vida é agitadíssima.Faz milhões de coisas diferentes e sempre arruma tempo para fazer mais uma.
Pensando em ajudar e unir as mães brasileiras que moram na Holanda, divulgou na internet o grupo criado por uma amiga chamado Curumim. A idéia era tirar dúvidas, dividir experiências, trocar dicas e discutir temas ligados à educação e saúde das crianças. O sucesso foi grande e ela resolveu abrir as fronteiras e dentro do Orkut lançou outro Curumim, desta vez para mães espalhadas pelo mundo que moram com seus filhos fora dos países de origem e que tenham como língua materna o portugês. São 473 pessoas inscritas na comunidade. Outro sucesso.
Ela diz que não é viciada em computador mas tem quatro em sua casa, um por pessoa, só que junto com o lado um pouco nerd tem também um lado zen. Professora de Yoga, cultiva sua espiritualidade e mais uma vez divide seus conhecimentos dando aulas ‘agora só uma vez por semana, já foram quatro’, diz.
No tempo que ainda sobra faz dança de salão com o marido e confessa, sem medo de ser brega, que assiste e se inspira no programa da televisão holandesa ‘Dançando com as Estrelas’.
A idéia de entevistá-la para o site www.brasileirosnaholanda.com além de elucidar o percurso de um médico estrangeiro ao tentar exercer a profissão nos Países Baixos, é conversar um pouco sobre o sistema de Saúde Pública na Holanda com uma brasileira que está se preparando para sentar do outro lado da mesa no consultório.
Praticamente no último dos dois anos da graduação que foi obrigada a re-fazer na Universidade Erasmus em Rotterdam para validar aqui seu diploma brasileiro de medicina, Alice falou ao nosso site sobre essa experiência, o que tem vivido e visto nos Hospitais holandeses, com seus professores-médicos e colegas.
No Brasil você era médica, qual foi exatamente a sua formação?
No Brasil eu estudei medicina na Universidade Federal de Minas Gerais em Belo Horizonte, entre 1985 e 1990 portanto 6 anos, como é a maioria dos cursos de medicina no mundo. Depois de formada entrei direto na residência em Psiquiatria. Fiz 2 anos de Psiquiatria Geral e 2 anos de Psiquiatria da Infância e da Adolescência. Toda a residência eu fiz na Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FEMIG). Foram portanto 10 anos de formação, 6 de graduação e 4 de especialização.
Como era o seu trabalho de médica em Belo Horizonte, você atendia em consultório particular ou em Hospitais?
Eu me formei no auge da política de ‘deshospitalização’ dos pacientes psiquiátricos, foi quando se desenvolveram vários tratamentos paralelos aos Hospitais, os chamados Hospitais Dia, Moradias Protegidas, onde o paciente estando fora de crise, dorme na sua própria casa ou com os familiares e passa o dia nessas instituições onde ele é acolhido, faz atividades, mas sempre mantendo o contato com a sociedade.
Eu me formei nessa corrente e nela permaneci, portanto eu não trabalhava num Hospital Psiquiátrico tradicional. Na verdade eu trabalhava num consultório particular que vendia o tratamento a convênios de saúde e também a pessoas particulares. Da maneira que são a maioria dos tratamentos médicos no Brasil.
Como é o processo de reconhecimento e legalização do diploma de medicina de um estrangeiro na Holanda?
Não existe uma resposta padrão para essa pergunta, o reconhecimento de um diploma médico depende de muitos fatores. Em todos os países existem muitas dificuldades para se validar um diploma na área da Saúde e na Holanda não é diferente. Eu acho isto justo e positivo levando-se em conta a responsabilidade de um médico perante seus pacientes. É preciso assegurar-se que o profissional dessa área tenha uma intensa qualificação técnica e ética.
Antes da minha chegada aqui na Holanda, até o início do ano 2000, levava-se mais em consideração o tempo de experiência profissional da pessoa, mas eu cheguei num momento em que a sociedade holandesa, não só neste caso mas de uma maneira geral, estava se fechando para os imigrantes. As regras já existiam mas abriam-se exceções. Nessa nova fase a regra passou a ser cumprida ao pé da letra e a regra é : todos os Países dentro da Comunidade Européia e os Estados Unidos ( por existirem acordos entre os dois governos) terão seus diplomas reconhecidos e validados, todo o resto fica de fora, ponto.
Para os casos que estão fora da regra é feito uma equivalência dos diplomas a partir de um estudo sobre o nível de ensino na área da Saúde dado no País em questão, feito pelo Ministério da Saúde Holandês.
No caso do Brasil este estudo data de 1967; então é com o padrão da década de 60 que o ensino de medicina, enfermagem, fisioterapia e todas as profissões da área são avaliados aqui na Holanda nos dias de hoje.
Em geral o resultado dessa avaliação é que sua graduação numa Universidade brasileira é considerada como tendo 2 anos a menos do que a do mesmo curso dado aqui, ou seja, os seus 6 anos de medicina são equiparados a 4 anos feitos na Universidade holandesa e a sua experiência profissional não é considerada porque eles alegam que você começou a trabalhar com uma qualificação insuficiente.
No meu caso, o parecer dado foi que eu deveria estudar mais dois anos na Universidade, os dois anos de internato.
Mas existe uma diferença para os chamados cursos técnicos dentro da área da Saúde. Na Holanda fonoaudiologia, fisioterapia, enfermagem por exemplo, são tidos como cursos técnicos, o que eles chamam de HBO. Para esses cursos a formação brasileira é vista como superior a daqui e por isso a revalidação dos diplomas é dada mais facilmente. Um fisioterapeuta com formação universitária brasileira, provavelmente terá que organizar um certo número de horas em estágios mas dificilmente voltará para a graduação.
Esta é a interpretação do governo holandês sobre o ensino dado no Brasil mas e na sua opinião, existem mesmo muitas diferenças entre o ensino de medicina dado aqui e lá?
Esta é uma pergunta capiciosa porque eu não conheço as diversas Universidades de Medicina do Brasil e o resutado do estudo feito pelo Governo Holandês é baseado numa média do ensino dado no Brasil como um todo, Minas Gerais, São Paulo, Ceará, Rio Grande do Sul enfim levando-se em consideração o ensino dado no País todo…eu não tenho esse conhecimento para poder julgar esta avaliação.
O que eu posso é falar sobre a minha experiência pessoal. Eu fiz a Universidade Federal de Minas Gerais e agora estudo na Universidade Erasmus em Rotterdam, e no meu caso existem muitas diferenças. A minha faculdade no Brasil é mais semelhante aqui na Holanda à Universidade de Maastricht, onde o currículo é montado em cima do que eles chamam ‘problema e solução’; isto é, o aluno estuda o problema como um todo para então solucioná-lo. Por exemplo a dor vai ser investigada nas suas diversas facetas; o que é um paciente com dor, da onde vem a dor, qual é a bioquímica da dor, quais são os mecanismos para resolver a dor, ou seja o aluno aprende a ter uma visão global da dor e baseado nesta visão ele vai pensar uma solução para o caso.
O ensino na Faculdade de Rotterdam por sua vez é baseado num currículo tradicional, onde tudo é estudado de uma maneira mais clássica. Portanto existem muitas diferenças de pontos de vista e até mesmo de conteúdo entre as faculdades, mas isso acontece tanto aqui como no Brasil.
A visão mais comum aqui é a de que o médico tem que ser uma biblioteca ambulante, ele tem que saber tudo de cor, e os médicos que estudam um currículo clássico se enquadram mais nesse estilo enquanto que um médico formado numa escola como a de Maastricht vai se aproximar de um problema e tentar resolvê-lo de uma maneira mais criativa, ele constrói o conhecimento a partir do problema do paciente mas ele não vai ser a biblioteca ambulante. Talvez uma outra diferença seja a de que para um estudante holandês chegar na escola de medicina ele tem que se sobressair nos estudos desde pequeno. Os jovens que estudam medicina aqui são inteligentes e estudam porque querem. No Brasil eu tinha colegas muito bons também mas que algumas vezes estudavam medicina porque o pai já era médico ou porque ele ou a família queriam ter um status social; aqui na Holanda não existe esta necessidade, o aluno estuda medicina na maioria das vezes porque ele quer ser médico. Essas são as diferenças que eu noto. Agora o ensino de medicina aqui é muito bom.
O que você recomenda aos outros médicos brasileiros que moram ou querem vir morar aqui e exercer a profissão?
Eu aconselho primeiramente a estudar muito holandês e dar uma refrescada nos conhecimentos médicos. Digo isto porque desde dezembro de 2005 existe um sistema de provas para o processo de reconhecimento dos diplomas de medicina. Na primeira fase os exames são de Inglês, Computação Médica e Conhecimento Médico em Holandês. Se a pessoa passar ela vai para a segunda fase que é uma entrevista em holandês e uma prova prática com pacientes simulados (atores). O resultado pode ser o recebimento do BIG que é o CRM holandês, ou seja, um registro do Ministério da Saúde e a recomendação de um estágio supervisionado, ou a pessoa pode ter que voltar a estudar de 1 a 6 anos na Universidade. A prova toda custa por volta de 2.300 euros que é mais ou menos o preço equivalente a um ano de estudo na Univesidade.
Quantas horas por dia você estuda?
Nenhuma. Eu saio de casa para ir ao hospital às sete da manhã e volto às seis e meia da tarde. Às vezes tenho um intervalo para almoçar, às vezes…
Eu já estudei muito medicina, eu já sou formada, então estou mais revendo as coisas não propriamente aprendendo. Eu comprei um livro de Saúde Pública Holandesa e um Palm Top onde eu tenho versões eletrônicas de alguns compêndios de medicina, só isso.
Existe muita hierarquia dentro do meio acadêmico na Holanda?
Muita, principalmente nos Hospitais Universitários. O estudante não pode dirigir a palavra à determinados professores e nunca pode chamá-lo pelo primeiro nome. Tratar um professor de você está completamente fora de cogitação.
Existe preconceito com o profissional ou colega estrangeiro na sua área?
Aqui em Rotterdam não. Num grupo de 5 colegas, 2 são holandeses, os outros 3 ou tem pais onde um é holandês e o outro estrangeiro ou onde os dois pais são estrangeiros.
Existe muita gente de outros países fazendo graduação e pós-graduação aqui?
Primeiro pós-graduação e graduação não se misturam. Eu sei que existem muitos estrangeiros fazendo doutorado por exemplo, mas o doutorado não dá o direito ao registro de médico na Holanda, o aluno recebe um registro de pesquisador.
Quais são as perspectivas de um médico brasileiro na Holanda?
Após validar o seu diploma as perspectivas são boas. O médico na Holanda tem um salário bom, não precisa se matar de trabalhar entre três, quatro empregos como o médico no Brasil mas veja bem, isso depois que você arrumou um emprego. E essa é toda a questão aqui.
Há pouco tempo eu fiz um internato de cirurgia onde conheci um colega que após cinco anos de especialização estava se formando mas ainda não tinha emprego. Ele não sabia nem quando isso ia acontecer, dizia que na área de cirurgia estava muito difícil arrumar trabalho. Esse colega, por exemplo, vai ter que dar plantão, vai ter que trabalhar em Pronto-Socorro, vai ralar…até conseguir um emprego fixo.
Uma das características do povo holandês é ser muito pragmático. Você vê esta característica também na maneira que se tratam as doenças aqui?
Sem dúvida. Pelo que eu percebo, no ponto de vista dos estrangeiros, essa é uma grande dificuldade.
Um médico faz o seu trabalho a partir do relacionamento que ele tem com o paciente; um relacionamento é sempre marcado pela cultura da onde se está e aqui na Holanda não temos como escapar do que você chamou de pragmatismo.
O paciente holandês procura o médico para resolver um problema pontual. O médico por sua vez, não vai resolver a vida do paciente nem fazer perguntas que não estejam relacionadas ao problema apresentado. Ele tem dez minutos para atender e resolver um problema, ele precisa portanto ser muito objetivo. Se você quiser falar sobre mais coisas com seu Huisarts você tem que avisar com antecedência e marcar uma consulta dupla. Diarréia é um problema, dor de cabeça é outro apesar de você sentir os dois ao mesmo tempo e de estar tudo dentro de você. O ponto é que os holandeses cresceram nesse sistema e sabem disso mas nós não.
Mas o Huisarts é um Clínico Geral e portanto é importante que ele tome conhecimento dos vários sintomas do problema, certo?
Não, o Clínico Geral é um especialista, um médico especializado em medicina interna enquanto que o Huisarts é um ‘médico de família’; talvez essa confusão se dê porque esta é uma especialidade que ainda está engatinhando no Brasil.
O Huisarts é o seu primeiro contato com o sistema de saúde, ele não é apenas um triagista porque ele também resolve uma série de problemas.
Ele é um médico que trata e conhece o paciente de uma maneira integral e longitudinal no tempo, ou seja, ele acompanha a pessoa no decorrer da vida, portanto vai saber como é o relacionamento dentro dessa família, como a mãe cuida dos seus filhos, como ela reage a certos sintomas, ele vai conhecendo o paciente através do que vai acontecendo no decorrer dos anos.
Se você, por exemplo, é uma pessoa que procura o médico quando seu filho espirra provavelmente ao lhe atender ele vai levar isto em consideração. Mas também pode ser que para você, o seu filho espirrar é um problema digno de atenção. Correto, mas o Huisarts vai considerar isto na hora de pensar se seu filho está com gripe ou pneumonia.
O Huisarts é um Clínico Generalista, não um Clínico Geral. Ao se formar ele estuda mais 4 anos para ser Huisarts ou seja, também tem uma formação acadêmica de 10 anos. Uma formação diferente do Clínico Geral.
Se você estiver com um problema complexo que o seu Huisarts não consegue resolver ou entender com precisão, ele lhe encaminhará a um ‘internista’, quero dizer, a um Clínico Geral. Se o Huisarts conseguir descobrir que o seu problema é na vesícula biliar, ele lhe encamihará a um gastroenterologista.
Todos os hospitais aqui na holanda tem uma Policlínica, o que no Brasil chamamos de Ambulatório, é lá que trabalham os Clínicos Gerais.
Muita gente reclama do atendimento médico dado aqui na Holanda. Quando devemos discutir sobre o diagnóstico médico e bater o pé?
Nós vamos ao médico para receber uma resposta, entregamos os sintomas e esperamos uma resposta. Muita gente vai ao médico sabendo no fundo o que quer escutar, a pessoa quer que o médico de um antibiótico ou um remédio tal, se ele não der ela fica brava ou desconfia, mas não diz nada. Em geral os brasileiros não questionam o médico, não perguntam o ‘por quê’. Temos que aprender de uma maneira adulta a questionar as respostas do médico se não estivermos de acordo, caso contrário a pessoa volta para casa com dois problemas, a doença/dor e a raiva do médico. Temos que perguntar e dar espaço para o médico responder mas também temos que estar preparados para ouvir a resposta que ele der; talvez o que ele fale não seja exatamente o que queríamos ouvir mas depois de discutido o assunto precisamos respeitar a decisão médica, afinal o médico tem mais conhecimento do que o leigo.
O médico e seu assistente dão as dicas do que tem que ser observado na maioria dos casos. Com as crianças por exemplo, 90% das doenças são virais e para doença viral não tem remédio, é preciso observar se ela está alerta, se continua com as funções basais, se está ingerindo líquido, é isso.
O que fazer quando você acha o seu Huisarts ruim?
Para tudo existem profissionais bons e ruins, em qualquer lugar do mundo, sejam eles médicos ou taxistas.
Aqui na Holanda a mobilidade do paciente em relação ao médico é menor mas ela existe. Se você não estiver satisfeito com o seu Huisarts primeiro precisa encontrar um outro médico que lhe aceite. Encontrado o novo médico, você liga para o consultório onde está cadastrado e pede para que o seu dossiê seja enviado ao novo endereço. Sem dúvida o maior problema é ser aceito quando já se está inscrito em outro consultório. Se depois de 30 telefonemas nada for conseguido, eu sugiro que a pessoa telefone para o seguro saúde e peça ajuda. Em geral eles tem acordos com médicos e podem através de alguns telefonemas ajudar o cliente a encontrar um novo Huisarts.
Na sua opinião, quando é o caso do doente ‘voltar para o Brasil’?
Quando a pessoa tem um diagnóstico de uma doença progressiva e grave, por exemplo câncer, e se encontra numa lista de espera de mais de 2 semanas para ser operado. Num caso desses se a pessoa tem condições de pagar passagem, tratamento, cirurgia, deveria ir.
Porque tem gente que diz que vai para a Bélgica fazer uma cirurgia? A medicina ou os médicos de lá são melhores?
Não. A diferença é que lá existe a possibilidade do paciente pagar para receber um determinado tratamento. Na Holanda os hospitais não podem receber dinheiro de uma pessoa física; não existe um relacionamento administrativo com o paciente, nos hospitais não há por exemplo um setor finaceiro para pacientes.
Como são eleitos os casos de prioridade dentro dos hospitais e como é distribuida a verba para os medicamentos, por exemplo nos tratamentos de câncer?
Eu sei que a maioria dos hospitais funcionam com um orçamento fechado que serve para absolutamente tudo que o hospital vai gastar, não apenas medicamentos e tratamentos mas tudo.
Eu só posso contar exatamente como é no hospital onde estou fazendo o internato e que portanto eu tenho conhecimento. Lá, nos tratamentos de câncer por exemplo, uma vez por semana existe uma reunião entre todos os oncologistas, cirurgiões e clínicos envolvidos nos casos da semana; nela são discutidos os casos um a um. São discussões baseadas em estudos sérissimos, científicos, que podem indicar quem ou melhor quais são os casos que possuem uma chance maior de sobrevida e de uma sobrevida com qualidade.
Não podemos falar simplesmente de custo benefício, porque estamos falando da vida e da qualidade de vida de pessoas mas a verdade é que alguns tratamentos são muito caros e portanto o hospital faz uma análise séria onde são eleitas prioridades. É uma discussão delicada, sem dúvida.
Mas o fato é que você tem o orçamento total do hospital e imagine que dentro dele exista um montante ‘X’ de dinheiro que poderia pagar por 1 ano uma quimioterapia a um paciente para tentar prolongar sua vida. Digamos que esse tratamento tenha por exemplo, 20% de chance de sucesso.
Por outro lado, com esse mesmo ‘X’ de dinheiro o hospital poderia pagar 5 operações cardíacas que iriam prolongar e dar qualidade de vida a esses pacientes nos próximos 10 anos, essas cirurgias teriam 70% de chance de sucesso. O hospital, ou seja, a junta médica que se reúne tem que discutir o que fazer com o orçamento.
É bem provável que o hospital opte pelo segundo caso. No ponto de vista do indivíduo é horrível mas o dinheiro não é da seguradora da pessoa, mas sim do hospital, onde estão todos esses pacientes. Se a pessoa não estiver satisfeita com o tratamento ou atendimento que está recebendo ela deve acionar a sua seguradora para que ela renegocie com o hospital porque os outros 5 pacientes não podem simplesmente ser penalizados.
A discussão sobre quem tem mais chance de sobrevida e sobrevida com qualidade é toda baseada em estudos científicos sérios que comprovaram algumas situações e suas consequências após determinados tratamentos.
Essa junta médica discute todos os casos do hospital uma vez por semana, mas não somente as prioridades, discute-se também onde o paciente vai ser tratado, como e por quem.
Você vai dizer que é uma discussão puramente científica, fria, pragmática…sim é, só que eu nunca vi um paciente não receber um tratamento por questões de orçamento mas sim porque o tratamento não traria nenhuma melhora no quadro da doença.
Pelo que eu saiba o paciente também pode bater o pé e dizer: eu quero receber o tratamento mesmo assim, mesmo não tendo chance de melhoria.
Os brasileiros em geral ficam escandalizados com esses procedimentos mas esquecem que no Brasil também existe uma seleção, não menos cruel, uma seleção sócio-econômica ou geográfica, ou seja, a pessoa ou tem dinheiro para pagar um bom plano de saúde ou tem sorte.
Se um paciente estiver em São Paulo e for encaminhado ao Hospital das Clínicas para participar de um grupo que esta sendo pesquisado ou estudado por médicos doutores-professores, altamente qualificados, ela terá a sorte de não pagar nada e receber um tratamento de altíssimo nível. Enquanto que se o mesmo paciente, com a mesma doença, estiver no interior do Piauí, dificilmente terá acesso a esse tratamento ou aos medicamentos.
No Brasil tem sempre aquela conversa: ‘o Dr. Fulano é o melhor, é o Bambambam nesta área’ como é isto aqui na Holanda? Onde ficam os ‘Bambambans’?
Primeiramente ser o ‘Bambambam’ aqui é diferente. Aqui ser o bom, o melhor, não é mais que a sua obrigação, esse é um país de cultura calvinista.
Mas se uma pessoa quiser ser atendida num hospital onde se realizam pesquisas, onde o conhecimento é dinâmico, um Hospital Universitário por exemplo, ela terá mais chance de receber um tratamento de ponta; mas não se esqueça que ela terá também que se submeter a ser um objeto de ensino e pesquisa. Mesmo assim é muito provável que o paciente nunca encontre o ‘bambambam’ porque ele só vai aparecer na hora da cirurgia, na sala de operação, sendo depois a sua equipe e o especialista que irão seguir com o atendimento, supervisionado talvez pelo bambambam. Talvez por pensar que tem mais o que fazer do que ficar dando consulta de ambulatório ou falando com paciente. Os especialistas aqui, de um modo geral, são muito bem formados. Todo especialista holandês por exemplo faz de um a quatro anos a mais de residência do que os brasileiros.
O que nem todo mundo sabe é que todo paciente ao ser indicado para uma cirurgia ou para um determinado tratamento pode perguntar qual é o volume anual de pacientes atendidos ou de procedimentos realizados naquele hospital ou por determinado profissional. Eles têm obrigação de informar e esclarecer, talvez não gostem da pergunta mas vão responder. Se a resposta for 1 paciente por ano enquanto no outro hospital forem 30 é claro que no segundo hospital construiu-se mais experiência nessa área e provavelmente melhor, certo? O lado ruim é que provavelmente lá haverá uma fila de espera…
Como é a imagem da medicina holandesa fora da Holanda?
Depende da especialidade. A Holanda é, por exemplo, respeitadíssima no mundo todo na área de Saúde Pública. Gastroenterologia é bastante reconhecida, virologia também, agora a cardiologia já não tem boa fama…
Na ginecologia e obstetrícia existe a peculiaridade da Verloskundige e do parto em casa, que representam 30% dos partos realizados no País. Há quem ache bom, há quem ache isso um sinal de atraso.
O que vai mudar com o novo sistema de seguro de saúde médica que está sendo implantado no País? Na sua opinião como vai ficar a qualidade da assistência médica?
A mudança é de um sistema mais público e coletivo para um sistema mais individual. Isso vai trazer todas as melhorias de um sistema mais individualizado mas o preço a pagar vai ser na saúde coletiva. Isso quer dizer que de um sistema mais socializado estamos caminhando para um sitema mais comercial. Dizem que a qualidade do atendimento vai melhorar mas a pergunta que eu faço é ‘o que é qualidade na Saúde Pública?’
No Brasil por exemplo um hospital bom tem que ter um hall bonito, funcionários com logo bordado nos uniformes, ou seja existe também uma estética que todo paciente brasileiro gosta e que ele associa à qualidade, mas isso não significa necessariamente que o atendimento e o tratamento recebido ali é bom. As vezes e só embalagem.
O Albert Heijn é bonito e caro o Lidl é feio e barato mas qual é melhor?
Para certas coisas, carne e pão por exemplo, o Albert Heijn é melhor que o Lidl para outras não faz diferença, os produtos equiparam-se em qualidade só mudam os preços. Acontece que no supermercado o consumidor tem como julgar, ele olha, pode até experimentar mas na Saúde não funciona assim; mesmo cientistas sérios dependendo das suas escolas ou da forma que eles estudam um caso, acabam tendo opiniões e visões diferentes, ou seja, a coisa é mais polêmica.
No Brasil , muitas vezes, o médico precisa contentar o paciente porque se ele não gostar, ele muda de médico ou de convênio, ou seja a medicina é voltada ao consumidor e não necessariamente à qualidade.
Voltando a falar da mudança o que vai acontecer de uma forma muito geral é que se você tiver um seguro bem básico ele provavelmente nao cobrirá o recebimento de um remédio novo e caríssimo para câncer. Esta pessoa provavelmente não terá o dinheiro no bolso para pagá-lo e vai ficar simplesmente sem o medicamento de ponta; enquanto que uma pessoa mais rica com um seguro mais caro vai ter acesso a recursos e tratamentos mais sofisticados e caros.
Quais são os pontos positivos dessa sua experiência na Universidade?
O principal para mim é o aprimoramento da língua porque através da comunicação construímos o relacionamento com as pessoas e a forma de se relacionar aqui é muito diferente da brasileira. A obrigatoriedade do curso dá ao profissional um tempo para construir uma nova forma de se comunicar e se relacionar com os pacientes mas principalmente, aprender a se posicionar como médico. Sinceramente acho que trabalhando também aprenderia isso, na verdade eu tenho dificuldade de ver um lado positivo nessa experiência, eu sinto esta volta à Universidade mais como um atraso na minha vida profissional.
Quais são seus planos futuro como médica brasileira radicada e habilitada na Holanda? Quais são os próximos passos?
Vou parar de dar consulta grátis pelo telefone! (risos)
Veja bem, eu estou no internato, fico num hospital onde são dadas aulas à residentes, na maioria das vezes são discussões de casos clínicos ou reuniões de juntas de especialistas. Eu trabalho na enfermaria, no bloco cirúrgico ou na poli-clínica que é o ambulatório. É como se fôssemos auxiliares dos residentes. Depois que eu me formar ainda vou ter que validar a minha especialidade e isso vai ser a parte dois da novela. Aqui na Holanda as novelas costumam durar 20 anos por aí você vai vendo…(risos)
Depois que eu concluir tudo isso quero poder voltar a trabalhar na minha área, Psiquiatria, e se possível tentar voltar a trabalhar com Psiquiatria da Infância e Adolescência.