COITADO DO TADEU!
Sérgio Godoy
“Arregaça a manga, mano!”,
gritou Tadeu da janela do tram 13, ao amigo que em espanto,
o olhou do outro lado da rua, sem saber o que dizer.
Os
dois se conheceram há dois anos atrás
em uma “roda de capoeira”, evento promovido pelo Buurtcentrum de Havelaar, Oud-West. João
Paulo havia recém chegado à Holanda. Depois de enfrentar
com sorrisos a imigração em Paris, desceu
do trem em Amsterdã sentindo-se uma criança
perdida em um parque de diversões. No bolso,
um papel dobrado com o telefone da amiga e 200 dólares
que conseguira economizar às custas do trabalho extra
em um dos bares da Vila Madalena. Usando-se do fraco inglês
que aprendera com uma namorada norte-americana, trocou o
dinheiro, comprou um cartão telefônico e ligou.
Jussara o atendeu um tanto aborrecida, não estava
em um de seus melhores dias:
- Chegou, é? Então
tá bom! sai da estação e pega o tram
número 9. Não vai esquecer, logo depois do
Tropen Museum você desce, atravessa a avenida e a minha
rua é a primeira à esquerda.
João
ficou pensando por alguns segundos antes de perguntar:
- Museu
do quê? Jussara colocou a mão na
cintura como sempre faz quando se sente impaciente e
respondeu:
- João,
não interessa, só fala pro cobrador te
avisar. Qualquer coisa me liga!
Aos
olhos de João, a cidade lhe parecia uma mistura
de beleza e apreensão. Ao sentar-se no tram com a
mochila no colo as pernas já não mais tremiam.“Consegui!
Cheguei à Europa! Jussara realmente é uma
grande amiga,” pensou.
O
apartamento ficava no terceiro andar de um prédio
escuro com escadas estreitas e diferentes pedaços
de carpete. Jussara abriu a porta, colocou a mão
na cintura, deu três beijinhos
no rosto cansado de João, para em seguida perguntar:
-
Você trouxe
o que eu pedi?
João colocou-se no meio
da sala, abriu a mochila e depois de espalhar as roupas
no chão,
tirou a garrafa Velho Barreiro e as duas últimas
edições
de Caras, que especificamente foram pedidas por uma das
garotas que dividia o mesmo apartamento. Jussara segurou
a garrafa nas mãos com reluzentes olhos:
- Você sabe
quanto custa essa branquinha por aqui? É uma fortuna!
Vou guardar pra horas especiais. Ah, já ia esquecendo,
olha, vai recolhendo toda essa bagunça que as
meninas já estão pra chegar e elas detestam
tranqueiras na sala. Como eu falei, eu divido esse “apertamento” com
a Rejane, Marinalva e Lúcia. Você também
vai entrar no aluguel e não dividimos comida.
Cada um faz a sua e acabou de cozinhar tem que limpar
o fogão.
O banheiro também, principalmente porque você é o único
homem da casa tenho que pedir um favor, não, não é um
favor, é uma ordem; você tem que fazer xixi
sentado!
Não
demorou muito para João Paulo saber que zolder queria dizer ático em holandês,
e era ali que
ele iria dormir; um colchão no chão, caixas
empilhadas e frestas de madeira como divisórias. Que
Rejane era a mais quieta das quatro, namorava um holandês
de um lugar chamado Purmerend e que em breve se mudaria para
lá. Marinalva era a mais velha de todas e a única
preocupação era trazer os dois filhos para
a Holanda. Lúcia e Jussara eram amigas, mas competiam pelos
mesmos namorados. Não demorou muito também
para que o dinheiro acabasse e assim foram dias de estômago
vazio e desespero no coração. Na hora do jantar
João descia e se colocava em uma pequena poltrona
no canto da sala e como se não quisesse nada ficava
olhando as quatro mulheres da casa, sentadas ao redor da
pequena mesa, cada uma com seu prato. Uma vez ou outra trocavam
entre elas um pedaço de carne ou um pouco de salada.
Riam alto, falavam sobre os novos produtos de limpeza, da
vida das patroas e do dinheiro enviado ao Brasil.
Um
dia, Marinalva sentiu pena de João e resolveu ser
solidária
levando-o para dividir as horas em uma das casas onde trabalhava.
Foi nesse mesmo dia que João decidira: Essa má sorte
há de mudar! Uma
vez ou outra lembrava-se de São Paulo e a saudade
trazia-lhe pequenas lágrimas, dentro do escuro, na
solidão empoeirada de seu zolder.
Jussara,
que revelou-se uma amiga oportunista, não
deixou de pedir para João que a ajudasse com a venda
de “caipirinhas” em uma “roda de capoeira” :
- “ Você só prepara,
vender, eu vendo!
Durante
toda a tarde João Paulo quebrou gêlo,
cortou limão e até olhou para algumas meninas
com sorriso sensual, mas elas não o olhavam; era difícil
concorrer com os holandeses. Quando Tadeu foi apresentado
a ele através de Jussara, João foi logo perguntando
sobre dicas de como arrumar emprego em Amsterdã.
- Mano,
a coisa tá preta! Não têm quase nada.
Conheço uns cara por aí que trabalham em construção…Eu
trabalho lá no mercado com o irmão da minha
mulher. É barra, é barra! E olha que sou casado
com uma holandesa, tenho permissão de trabalho e tudo
mais. Não sei não, mano, acho melhor você voltar
pro Brasil!
Jussara,
com a mão na cintura, olhou para João
e gritou:
- E aí, João, vai ficar jogando
conversa fora ou vai me ajudar? Olha aí, tem um monte
de gente querendo comprar, vai cara!
Quando
a festa terminou Jussara resolveu sair com Tadeu mas antes
deu a João 5 Euros para que ele pudesse
voltar para casa. Tadeu ainda comentou que sabia de alguém
que estava à procura de uma faxineira e ofereceu o
trabalho à Jussara, que recusou, já não
havia mais tempo. João interrompeu a conversa implorando
ao novo amigo:
-
Deixa eu ir! Eu estou sem nada, já procurei
trabalho em todo lugar e não consigo. Deixa eu fazer
essa faxina?!”
Tadeu olhou João da cabeça
aos pés e com um riso no canto da boca falou:
- Não
dá não, mano.Você não têm
jeito pra isso não! E beijando Jussara no pescoço
saiu em direção à sua bicicleta, olhou
para trás e gritou:
- Arregaça a manga,
mano!
E
se não fosse pela boa intenção de
Marinalva, João teria voltado ao Brasil. Com ela,
ele dividiu algumas faxinas, conheceu outros brasileiros
e fixou-se em outros trabalhos. Todas as noites colocava-se
sob a fraca luz de seu quarto e estudava a língua
Holandesa. Tornou-se membro da biblioteca local e toda semana
levava para casa novos livros de estudos. Depois de oito
meses na Holanda e das nuvens escuras começarem a
se dissipar sobre sua cabeça, João orgulhosamente
abria o jornal para ler notícias e traduzia as cartas
do Postbank que chegavam para Marinalva. Em uma de suas leituras
chegou ao encontro de um anúncio: Vrouw zoekt
Man: Charmante dame, 35 jr. zkt. man of vriend van goed niveau.
Reizen, uitgaan en een open haard thuis horen bij deze warme
en onafhankelijke vrouw.
Com
esperança de dias melhores e da paixão
que o revigoraria, João Paulo encontrou-a, como combinado,
em um bar com largas janelas em Rembrandtplein. Ao
fixar o olhar à figura que com a cabeça
do lado de fora do tram gritava em audível português,
João Paulo sentiu-se um tanto envergonhado. Não
por ouvir sua própria língua, mas pelo exagero
repercutido de Tadeu.
Ao
descer do tram, Tadeu caminhou em direção
ao amigo mostrando certa dificuldade em controlar os passos.
Abriu os braços e abraçou João Paulo
como se fossem amigos desde a infância.
- Nossa
mano, tá diferente. Engordou um pouquinho, mas tá legal!
E toda essa roupa cara, mano?! E aí, me conta, como
tá a vida?
João ajeitou o casaco, afastou-se
para trás na tentativa de defender-se do álcool
que exalava da boca de Tadeu e respondeu:
-
Tá legal.
Muito legal! Olha aí, estou comprando as primeiras
roupas do meu filho. Ele nasce em dois meses. Minha mulher
está toda feliz!
-Você casou,
mano?! Pô, nem pra convidar. Que
amigo é esse?!… Casou com quem, Jussara?
-Jussara… enlouqueceu?
Casei-me com uma mulher linda. Ela mudou minha vida por completo.
Vivemos repletos de boas perspectivas; a chegada do filho,
a nova casa que vamos comprar. Sabe como é, criança
precisa de espaço.
-
Pers…perspectivas…o quê? Tá falando
difícil, mano! E as “meninas” lá do
Oost, como estão?
-
Jussara voltou para o Brasil, Rejane casou-se e mora em
Purmerend, Lúcia deve estar por aí e Marinalva,
finalmente trouxe os filhos e vai ser a madrinha do meu.
A vida muda! E você, ainda está trabalhando
lá no mercado?
-Que
nada! Saí na maior porrada com meu cunhado.
Parei de trabalhar lá e agora só recebo o uitkering.
Tá barra, mano, não têm trabalho por
aí não. Minha mulher tá legal, continua
gostosona. Holandesa danada! Mas por falar em trabalho, tu
não sabes de um? -Trabalho?
Não, não sei de nada. Mas como
você mesmo diz: “arregaça a manga, mano!”
Tadeu
abriu a porta da sala com cuidado. Cabeça
baixa, aproximou-se da mulher, que espremida na poltrona,
porque há meses parara com a dieta, saboreava um frikandel.
Ao lado, um prato com bitterballen e a televisão ligada.
Era hora de Goede tijden, slechte tijden.
Sentou-se
no sofá e perguntou:
- Não
têm janta?
A
mulher se ajeitou na poltrona, olhou para trás
e gritou:
-Cala
a boca, vies brasiliaan!
Na
cozinha, Tadeu abriu os armários à procura
da garrafa de jenever. Encheu um copo com a bebida e foi
para a cama. Deitado, olhando para o teto, lembrou-se de
João : “Arregaça a manga…arregaça
a manga…arregaça a manga” Olha aí,
isso dá até um sambinha! Murmurou, antes de
fechar os olhos e dormir.
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