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Sérgio Godoy é paulistano, graduado em Artes Visuais: Central Saint Martins School of Art , em Londres. Participou de várias antologias literárias no Brasil e alguns de seus poemas foram publicados em Poetry Review UK.

DEUZA NASCIMENTO

Sérgio Godoy

Sentia-se aborrecido, um tanto solitário. Sexta-feira à noite - com uma latinha de Heineken na mão - dentro do cinema, esperando a hora do filme começar. Na fileira de trás um grupo de marroquinos barulhentos, à sua frente, casais com braços entrelaçados; mãos que se tocam, bocas que se beijam e o cheiro de pipoca no ar. Se tivesse ficado em Sampa com Júlia, mesmo brigando como dois idiotas, pelo menos estaria acompanhado, pensou.

Não sabia ao certo como ainda não pôde esquecê-la, mesmo depois dos pontapés, dos gritos, da humilhação. Ficou mesmo chocado quando ela disse que não queria mais nada, e mais chocado ainda quando percebeu que com esse resultado sentia-se deprimido.

Pensou que tudo ia passar, uma vez que estivesse longe daquela cidade; ainda teve que suportar a pressão por mais 7 meses até que seu passaporte saísse. “Vou conhecer o seu irmão!” Disse ao pai, que ficou o olhando de boca aberta, uma vez que nunca mais entrara em contato com a família na Itália.

E assim foi, desceu até o “salto da bota” e chegou na Sicília. Mas não esperava ser tratado pela família do pai como um desconhecido e na altura dos acontecimentos, já desconhecia a si próprio. Uma vez na Europa, por que não conhecer o resto? Subiu até Roma, depois Veneza, pegou um trem até Frankfurt e sem uma razão específica, acabou em Paris.

A verdade era uma só, em cada esquina, em cada bar, somente via o rosto de Júlia. Não conseguia se interessar por nada e por isso mesmo entrou novamente em um trem e desceu em Amsterdã. Por razões ainda desconhecidas só foi em Amsterdã que começou a sentir-se um pouco melhor; a cidade o pegou em cheio.

No primeiro mês resolveu não fazer nada e seus dias eram ocupados pelo simples prazer de pedalar por toda a cidade. Passou o verão largado no Vondelpark e quando o dinheiro acabou foi atrás de emprego. Namorou uma holandesa muito independente para o padrão brasileiro, mudou de casa várias vezes e entrou em uma academia de ginástica.

Agora, dentro do cinema, novamente pensa em Júlia. O filme começa e o barulho não diminui. “De onde esse povo saiu? Qual aldeia?” A cerveja que já está morna desce por sua garganta e o filme não o ajuda a transgredir o pensamento. Com gesto de coragem levanta-se indignado, como se alguém pudesse se importar com sua indignação. Está chovendo. Diz qualquer coisa como: “Que merda, nessa cidade só chove!”

Ao atravessar a rua alguém bate em seu ombro, vira para trás e dá de cara com Gerson; amigos desde o primeiro dia de trabalho. Gerson lhe pergunta aonde vai, o que está fazendo, e ele evita responder. Diz que acaba de sair do cinema e o outro não pergunta nada sobre o filme, aliviando maiores explicações sobre uma incompleta noite. Gerson está indo à uma festa e o convida. Entre ir para casa e passar tantas outras horas assistindo televisão, resolve segui-lo. Antes param em um shoarma perto de Rembrandtplein e enquanto Gerson abre a boca mordendo o misto de carne, ele acende um cigarro e fica olhando a chuva cair.

Seguem caminhando até Waterlooplein. Apertam a campainha do apartamento e sobem. Ao entrar, nota de imediato que a casa pertence a uma holandesa que está grudada em um moreno com uma calça que possui duas faixas amarela e verde. Gerson abre caminho e vai distribuindo beijinhos na moçada. A música pára e finalmente o samba-regue é substituído por samba-canção. Gerson o puxa de lado e diz para que ele se sinta à vontade; “Beba todas, meu irmão, estamos em uma festa!” Ele segue até as garrafas e enche um copo com vodka. No centro da sala a dona da casa beija o moreno que se enfia entre as pernas da moça e ensaia um passo de samba; a moça joga a cabeça para trás, rindo e marcando posse de seu território. Entre olhares indiscretos, moreno desfila sua virilidade brasileira como principal porta-estandarte da noite.

Alguém se aproxima, faz que não percebe, tenta escapar. É uma garota de estatura baixa e cabelos ondulados. Não é bonita, não é feia. Têm os seios grandes demais para a cintura fina na calça de jeans que mal dá pra mexer a bunda.

- Tudo bem? Pergunta ela jogando as “ondas” sobre os ombros.
- Tudo.

- Nossa, você nem parece brasileiro. É holandês?

- Não. Sou brasileiro mesmo.

- Ah, mas parece estrangeiro…

- Meu pai é italiano.

- Puxa, que legal!
-
Legal, por quê?
- Ah, sei lá…acho legal!
- Qual é o seu nome?

- Bruno.
-
O meu é Deuza. Deuza Nascimento.

Ele diz que deve ir ao banheiro e escapa. Vai até a cozinha que está entupida de gente, dá meia-volta e pára no corredor. De onde está, pode ver Deuza conversando com a amiga. Começa a rir como um idiota e não sabe se é por causa do álcool ou do nome da brasileira que faz acrobacias desajeitadas na roupa apertada. Com tamanha rapidez ela corre em sua direção e o abraça. Ele pode sentir os grandes seios de Deuza contra seu peito e sem recusas, deixa a língua entrar em sua boca e por um instante é Julia quem o beija; o mesmo gôsto, o mesmo calor, a mesma intensidade. Abre a mão e pressiona Deuza contra seu corpo.

Sobem até o último andar do prédio e abrem a porta de um zolder. Ela começa a se despir com dificuldade em tirar o jeans e ele sobre ela, pensa que Júlia jamais faria sexo sem camisinha. Entra em certa paranóia, pensa que isso seria uma boa desculpa e diz à Deuza que seria melhor deixar para uma outra vez, já sabendo que nunca haveria uma outra vez, e que fazer sexo sem preservativo era perigoso e ela fingindo não ouvir começa a acariciá-lo deixando-o excitado, o que contradiz o pensamento de Bruno, indicando que já era tarde demais.

Segunda-feira penal! Dor de cabeça. A tela do computador ardendo em seus olhos. Gerson não cala a boca. Diz que o procurou antes de ir embora mas como não o encontrou, saiu sozinho. Bruno não está interessado! A mão começa a tremer e sente o estômago virar, levanta e vai para casa. Jogo-se na cama e como em um transe hipnótico, vê Julia sentada ao seu lado, que o toca com carinho e toda a suavidade transforma-se em aspereza quando ela o acusa de traição. E antes que ele possa responder, Deuza aparece na beira da cama cobrindo o rosto com as mãos e pedindo-lhe desculpas…

Parado na ponte, observa a Igreja ao fundo do canal. É conhecida, só não se lembra o nome. Sabe que foi pintada por um dos impressionistas durante uma de suas visitas à Amsterdã. Em Groenburgwal, Bruno entra na clínica, pega um número na recepção e espera até ser chamado para preencher duas páginas de um formulário com perguntas sobre seu comportamento sexual: solteiro, casado, relações sexuais casuais, quantas vezes com a mesma parceira, uso de preservativo…

Na sala de espera compartilha as horas com outros homens e mulheres como se dividissem um só segredo, um só destino. Ao ser chamado, entra em uma sala e quando pensa que haveria somente novas perguntas, o médico lhe informa que terá que examiná-lo. Pede para Bruno descer as calças e deitar na pequena cama coberta por um lençol de papel. Com os olhos fechados ele pensa em Deuza, e é mais uma vez que Júlia surge entre sombras. Depois de tirar sangue e urinar em um vidrinho, Bruno se senta ao redor de “seus” companheiros de espera.

O médico mais uma vez o chama ao consultório e diz que o resultado é negativo; não contraiu nehuma doença transmissível por sexo, mas é de bom senso que faça o teste HIV.

Depois de passar por vários relacionamentos amorosos, alguns com conseqüências bastante desagradáveis, dessa vez Deuza podia afirmar com intensidade que estava mesmo apaixonada. As amigas não acreditavam. Com ela sempre foi assim; paixão simultânea: o alemão, o brasileiro, o português, para não mencionar o holandês, que ficara “derretido” com os encantos da moça. Mas Deuza falava a verdade; passou o fim-de-semana pensando em Bruno, não saiu de casa e não conseguiu fazer nada além de ficar deitada no sofá pensando no encontro casual de sexta-feira. Quando Rosaly colocou por acaso um cd antigo com músicas de Maria Betânia, Deuza pediu que fizesse silêncio e foi para o quarto chorando.

Na semana seguinte a situação piorara, pois sentia o coração apertado, a voz melancólica e tudo parecia-lhe muito triste. Depois do trabalho caminhava pelas ruas da cidade, sem direção específíca, com a esperança de encontrá-lo. Imaginava-se em seus braços e até mesmo, de mãos dadas, entre beijos e sorrisos em uma tarde de domingo passeando em Keukenhof.

Faria o impossível para descobrir o endereço de Bruno, afinal de contas sabia que nada acontece por acaso. E dessa vez, sim, dessa vez, seria para sempre.

O resultado veio negativo. Bruno não acreditava em sua sorte, prometendo a si mesmo que nunca mais correria tão grande risco. Foi para casa e arrumou o apartamento, lavou o amontoado de roupa suja que largara no chão desde sua última visita à clínica e saiu para cortar o cabelo. Impulsionado pelo desejo de sempre estar de partida, passou na agência de viagem e sem complicações escolheu um novo destino, um lugar de sol e praia onde talvez pudesse deitar na areia morna e sonhar com Júlia.

Através de uma amiga que vagamente conhecia Gerson, Deuza chegou à casa de Bruno. Chegou tarde demais. Mas sabia que algo em sua vida havia mudado e um propósito apontava-se em seu destino: “A fé move montanhas!” murmurou para si mesma, enquanto enfrentava o vento frio que batia em seu rosto, trazendo-lhe alguma lágrima. Era inverno em Amsterdã. No verão, tudo fica mais fácil!

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