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Sérgio Godoy é paulistano, graduado em Artes Visuais: Central Saint Martins School of Art , em Londres. Participou de várias antologias literárias no Brasil e alguns de seus poemas foram publicados em Poetry Review UK.

TRISTE TRIESTE

Sérgio Godoy

Foi com grande surpresa que encontrei entre as folhas de um caderno antigo uma fotografia há muito tempo esquecida. O sorriso de turista e ao fundo o Castelo de Duino. Em 1985 trabalhei como voluntário em um hospital psiquiátrico de Trieste, Itália. Esse hospital foi um dos pioneiros na integração do doente mental com a sociedade; abriu suas portas e integrou o paciente à vida da cidade e seus moradores. Lembro de meu primeiro encontro com alguns internos; Loredana, que ainda jovem fôra submetida à lobotomia frontal. Maria, uma senhora de 54 anos que estava internada no hospital desde seus 24 anos de idade. Com ela trabalhei por seis meses, acompanhando-a desde o café da manhã até o final da tarde onde sentávamos em um pequeno bar no jardim do hospital e jogávamos pôquer; ela era excelente no jogo. Maria sofria de esquizofrenia e catatonismo. Muitas vezes diante de um ataque de pânico era necessário abraçá-la, fazendo com que se sentisse segura em seu “mundo particular”.

Dois dias da semana dedicava meu tempo em um estúdio onde aula de cerâmica e pintura era fornecida aos jovens em tratamento anti-droga. O grupo de voluntários se dividia em várias nacionalidades e ocupávamos uma só casa no final de uma das alamedas que por muitas vezes nos parecia um tanto assustadora.

Durante dias quentes frequentávamos algumas praias vizinhas e nos banhávamos no Mar Adriático, ou simplesmente acompanhávamos a “passeggiata musicale” no Castelo de Miramare. Trieste era uma cidade adormecida no passado e praticamente  abandonada pela geração mais jovem. Percorrer suas ruas estreitas, envolver-se com o dialeto triestino e participar das reuniões com todos os voluntários, enfermeiros e psicólogos era parte de nossa rotina semanal. Também íamos, sempre que possível à Veneza, onde um mundo totalmente diferente abria-se à nossa frente. Foram também seis meses de novas amizades que com o passar do tempo se desvaneceram em diferentes caminhos. Lembro-me de Helmut que me ensinou a apreciar Hesse, de Azita, com seus negros olhos paquistaneses e Rute, o sorriso brasileiro provocando malícias. Muitas vezes percorríamos as ruas à “procura” dos passos de Svevo ou de Joyce e sempre que possível, íamos ao Castelo de Duíno onde Rilke escrevera suas elegias. Mas nem tudo envolvia-se em tranqüilidade, não estávamos em um acampamento e sim em um hospital com jovens autistas, outros que se recuperavam das drogas ou em profundo estado de depressão. E outros, como Loredana e Maria, apenas esperando a hora da final transição.

Foi também em Trieste que pela primeira vez tive contato com um cidadão holandês que com certo orgulho me dissera: “Em Amsterdã, tudo é possível!”

Agora, observo melhor a fotografia que seguro em minhas mãos e vejo em meu olhar a gostosa ingenuidade daquele tempo onde tudo abria-se aos acontecimentos sem pesar grandes responsabilidades. E nos traços do destino nunca imaginaria que depois de Trieste eu voltaria para o Brasil e muito mais tarde o meu constante desejo de sempre estar com o pé na estrada me traria novamente à Europa, presenteando-me com novas experiências, novos amigos, dúvidas e certezas onde o verdadeiro valor está em tudo que realmente sabemos aprender.

 

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