Amor Para Sempre
Sérgio Godoy
Quando a conheci, ela tinha 90 anos de idade. Era natal e pela primeira vez eu estava sendo apresentado à família do meu parceiro. Ela entrou na casa em passos lentos, tirou o casaco e aproximou-se, deu-me três beijos no rosto, suas primeiras palavras foram: “É um prazer conhecer o namorado do meu neto!”
Após o jantar ela tirou da bolsa um azulejo no qual uma frase estava escrita. Há muitos anos atrás seu marido foi um dos diretores da Philips e viajara não só pela Europa mas também pelo Brasil. Em Portugal ele comprara esse pequeno azulejo sem compreender o sentido das palavras e o trouxe à sua mulher como lembrança. Eles nunca tiveram a oportunidade de uma tradução e assim o azulejo ficou guardado em uma caixa até que por destino, muitos anos depois, ali estava eu, traduzindo a simples sentença: “Amor Para Sempre”. Com grande sorriso de contentamento ela acariciou minha mão e agradeceu. A ceia de natal completou-se em harmonia e no final da noite pude sentir-me extasiado, feliz por dar início a uma amizade que me preencheu de carinho por sete anos.
Domingo passado a vi pela última vez. Fomos visitá-la sabendo que seu corpo que vivera 97 anos agora pedia descanso. Aproximei-me da cama e ela virou o rosto para mim. Sorrindo, pronunciou meu nome e em silêncio beijei sua mão. Ficamos ao seu lado e mesmo que a dor física interrompesse suas palavras, ainda falou-me sobre a bonita pintura que decorava uma das paredes de seu quarto.
Em minhas visitas à sua casa, me sentava confortavelmente no sofá e sobre a mesa sempre havia uma xícara de chá e um pequeno prato com biscoitos. Então ela me perguntava sobre meus poemas, sobre minhas pinturas, com palavras de entusiasmo e sabedoria, me apoiava em minhas idéias.
Durante sua infância e adolescência pôde acompanhar movimentos radicais nas artes plásticas, no comportamento da sociedade européia e o drástico nascimento do nazismo. Viu com olhos horrorizados a Segunda Guerra Mundial chegar tão próximo de sua casa com estrondosa repercussão. Pôde também apreciar o progresso tecnológico que o mundo foi introduzindo; as modernas linhas arquitetônicas, a computação, a câmara digital… Foram quase cem anos de vida.
Agora os netos tocam seu rosto e alinham fios de cabelos brancos na despedida que guarda-se na memória. Para cada um deles ela representou um mundo particular, e para os bisnetos, a eterna presença no álbum de família.
Segunda-feira de chuva forte. Ao fundo uma grande vidraça que deixa à mostra uma bonita alameda rodeada de frondosas árvores. A família entra primeiro. Em silêncio observamos as coroas de flores. Logo depois a porta é aberta e chegam os amigos. Entre a música de Handel e Mahler, soam palavras emocionadas que para ela foram escritas. Poemas são recitados em vozes trêmulas e quando a chuva pára e o sol abre caminhos luminosos entre as folhas das árvores, lágrimas são substituídas por sorrisos. Posso ver pássaros cruzando a alameda e em mim um só pensamento: esse é o aceno de adeus. E era esse seu desejo, partir deixando uma mescla de sorriso nos lábios de todas as pessoas que passaram por sua vida.
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